Saturação da memória

Em nosso mundo contemporâneo, parecemos viver em permanente resgate da memória, onde somos cada vez mais simpáticos às técnicas de reprodução e preservação do passado. Trata-se de uma espécie de exacerbação da memória que vem tomando proporções significativas nas maneiras atuais de viver. Tal fenômeno político e social, pode ser pensado como tentativa de compensar o ritmo desenfreado das informações, regime instantâneo e fragmentado. Trata-se de algo que emerge como resposta à aceleração, mas também como saída comercial a ela, já que toda esta tecnologia da memória desenvolvida na atualidade vincula-se – às vezes de modos mais estreitos, outras de modos frouxos – a uma visibilidade afinada também com a indústria do consumo e do espetáculo. De todo modo, a emergência da memória como preocupação relevante no contexto cultural é um dos elementos que parece nos distanciar, cada vez mais, da mania moderna de querer ultrapassar o passado.

Artigos do Icônica

Com os artigos a seguir, podemos nos propor a pensar a relação entre a memória e a dimensão temporal. Através de propostas imagéticas de fotógrafos que trabalham as questões da memória, os artigos auxiliam a levantar questões acerca dos usos dessas fotografias no presente.

Questões

1Reflita sobre a ansiedade que as pessoas tem hoje com relação à memória. Seria esse um gesto característico dos dias atuais?
2Como a modernidade se relacionava com o passado? Lembre-se, por exemplo, do desejo das vanguardas artísticas inventarem algo absolutamente novo e ultrapassar o que já tinha sido feito. Discuta também a própria ideia de progresso. Será que ainda mantemos as mesmas crenças de futuro e o mesmo desprezo pelo passado?
3Modas vintages, medo do esquecimento, produção desenfreada de imagens que arquivam tudo, a todo instante. Essas seriam algumas das características do excesso de memória. O que ele poderia nos dizer sobre nosso próprio presente?

Para pensar com os artistas

Christian Boltanski (França)
Sorte, 2011

A obra de Christian Boltanski aborda em tom melancólico um fato inevitável: com morte, os traços da existência dos indivíduos tende a se apagar. Com frequência, seus trabalhos constituem monumentos e altares dedicados a pessoas anônimas. Em Sorte, ele cria uma grande instação que mostra o rosto de recém nascidos que passam pelo olhar como se estivessem numa linha de produção. Com certo otimismo, o artista observa que novas vidas sempre sucedem a morte: numa tela, vemos a estimativa dos novos nascimentos pelo undo desde o início da exposição. Mas a velocidade do mecanismo também sugere que é impossível construir uma memória que dê conta de cada um desses seres. Vez ou outra, o mecanismo para e um monitor de vídeo retém, por alguns segundos, um desses rostos escolhido ao acaso. Numa outra tela, o rosto desses bebês se fragmentam e se misturam ao retrato de outros anônimos.

Rosângela Rennó (Brasil)
Imemorial, 1994

 

Muitas vezes, os arquivos criados e acumulados pelas instituições, mais do que garantir uma memória, tem o objetivo de administrar nosso esquecimento. Neste trabalho, Rosângela Rennó parte de um acervo de 15 mil fotografias guardadas no Arquivo Público do Distrito Federal, que registram os funcionários da empresa que foi responsável pela construção de Brasília. As fichas daqueles que morreram durante as obras traziam a inscrição: “dispensados por motivo de morte”. No trabalho da artista, alguns desses rostos aparecem de forma muito escura, tornando essas pessoas quase invisíveis. Isso é algo que, de fato, o próprio arquivo já havia feito com elas, ao retratá-las para, logo em seguida, tornar os registros inacessíveis .
Para saber mais: http://www.rosangelarenno.com.br