As fotografias nascem quando se tornam legíveis – e essa legibilidade diz respeito ao que se pode ver, pensar e acreditar em determinado ponto crítico de uma época. Como já mencionado, todo presente é determinado pelas imagens que lhe são sincrônicas. Cada agora é o agora de uma capacidade de perceber, tornar legível não o passado em si, mas a constelação entre a materialidade do agora atual e do agora virtual. A visibilidade de uma imagem – aquilo que se atualiza numa fotografia de modo imanente e singular – depende de um impulso duplo: do estilhaço do outrora e da recognoscibilidade do agora. A fotografia convida; deseja ser decifrada; oferece uma inscrição pretérita de porvir, uma faísca. Nela, olhos lançam-se ao futuro, sendo capazes de se estender ao atual, coexistindo com aquele que reconhece, percebe e faz nascer novamente uma fotografia.
Essa extensão entre os dois momentos, no entanto, não anula os diferenciais de tempo; ao contrário, é a distância bem como a diferença entre esses agoras (atual e virtual) que possibilita qualquer legibilidade. É a alteridade do presente – constituída por formulações próprias sobre tempo, verdade e memória – que constitui o tecido do que se pode ou não ‘ver’. Cada formação histórica, em sua rede heterogênea de enunciados, práticas, saberes e fenômenos, está sincronizada com linhas de visibilidade e curvas de enunciação, vinculada estratégica e diretamente aos domínios de poder, às linhas de subejtivação e dessubjetivação, a vetores de disputas políticas. Nossas imagens são, na realidade, máquinas de ver e fazer falar, promover visíveis e invisíveis, esquecer e lembrar, acelerar transparências e introduzir opacidades.
Imagens imprecisas, por exemplo, tornaram-se invisíveis para nós: tremidos, contraluzes, fora de foco constituem, na cultura contemporânea, imagens sem sentido. A fotografia imperfeita (um pouco escura, um tanto ‘granulada’, razoavelmente tremida) clicada pelo garçom-mensageiro e que, durante anos, atrelou o caráter turvo e precário à potência da memória daquele encontro amoroso seria hoje possivelmente descartável. A fragilidade que atribuiu destino àquele instante fotográfico provavelmente não seria, nos dias atuais, capaz nem de visar ao futuro nem de conservar os traços de uma forma desaparecida, aquela que pôde fazer-nos confrontar, através da fotografia, o abissal do tempo: tudo que estava perdido e, simultaneamente, tudo que nos restava. O inapreensível (que exercia a defasagem fotográfica e podia atualizar os sonhos metarfoseantes da imagem) parece hoje demandar ser regenerado, tratado e eliminado digitalmente. A instabilidade, a mescla do que se pode ver com o que não se pode, o opaco de uma imagem aparentam, na contemporaneidade, deficiência. Numa cultura ameaçada pelo mal-estar do esquecimento, tanto as imagens quanto a memória e o corpo devem ser matérias plásticas de suposta transparência, exatidão e aptas ao controle.
A experiência da precariedade da imagem parece estar sendo progressivamente interditada ou talvez substituída por uma nova configuração de visibilidade em que memória e instante se articulam de modo inédito. O discurso tecnológico nos propõe – como bem percebe José Gil – que não haverá falhas, exceto as que acontecerem às próprias máquinas, concebidas, aliás, para se corrigirem e regenerarem. O mundo (e suas imagens) poderá ser, enfim, essencialmente asseptizado e puro. “Não por acaso os bombardeamentos da Guerra do Golfo foram chamados de ‘ataques cirúrgicos’; nem por acaso qualificam as bombas atómicas de ‘sujas’ e ‘limpas’. Por detrás deste vocabulário (que se estende para lá da esfera militar), esconde-se a ideia de um virtual sem mancha que deve substituir a vida impura, maculada, desvalorizada” (Gil, José. “Um virtual ainda pouco virtual”, Revista de Comunicação e Linguagens, n.31 – Imagem e vida, Lisboa, Relógio d’Água, 2003). Se o objetivo é banir a imprevisibilidade e o acaso dos comportamentos, também a memória coletiva ou individual precisa constituir uma espécie de espaço liso da experiência. A memória fragmentada vai, assim, cedendo lugar ao desejo de uma memória total, limpa e gerenciável. Trata-se de configuração subjetiva que possibilita não apenas a existência de “projetos” empresariais como ‘Your second shot’, mas também que esses projetos mobilizem dezenas de pessoas, prometendo reabilitar suas lembranças. Lançado em 2010, ainda vigente e ativo hoje, o Second shot Project promete “ajudar pessoas reais a recapturar momentos perdidos (…) oferecendo-lhes seus momentos de volta”.
Eis o que a empresa promete: então… um dia… você pode novamente realizar aquele click; eis que você consegue voltar no tempo, e tudo é refeito: pronto, você arrumou o cabelo, ele, a camisa − num estalo, você descarta o obscuro e recompõe a nitidez da memória. A imagem do passado é, então, reabilitada. A fotografia do primeiro encontro agora é clara, precisa e absolutamente legível.
A Sofia a empresa promete o seguinte: recriar e recapturar o momento que ela e seu namorado teriam vivido, há alguns anos, numa praça de Barcelona. Para isso, a Canon levou-a novamente “àquela cidade mágica”, produzindo seu segundo shot, substituto de uma imagem tremida e desfocada. No mesmo local, o mesmo senhor sentado ao fundo, a mesma pose, agora, no entanto, elementos nítidos e estáticos. Click! “Faz três anos que perdemos aquela foto”, declara Sofia no site do projeto da Canon. “Agora, está perfeita! Tivemos a chance de reivindicar o que deveria ter ficado bem na primeira vez e não ficou”. De acordo com a mãe de Sofia, a fotografia refeita é capaz de fazê-los “estarem novamente presentes”. Ao olhá-la “estamos lá. Estamos olhando o passado. Não acredito que muitas pessoas tenham a chance de fazer isso”.
A banda de rock americana The Postelles também teve a ‘oportunidade’ (segundo a Canon) de recapturar o primeiro show da vida deles, realizado muitos anos antes, na legendária galeria CBGB, em Nova York. Um de seus músicos se lembra de, na época, ter ficado impressionado com a única foto do show; olhando-a novamente, entretanto, percebeu que o fundo escuro da imagem não dizia muito sobre o que teria acontecido de fato naquele momento tão significativo para a história do grupo. A Canon reabriu a galeria por uma noite, e a banda refez o show inaugural da carreira. Com o second shot é possível ver, então, uma imagem clara e cheia de detalhes da memorável noite ou de seu remake.
A empresa exibe com orgulho a recaptura da festa surpresa que Franny fez para seu pai na Flórida e a aposta de Dara e Marshall de cavalgar um touro mecânico. O projeto, contudo, pretende ainda angariar mais histórias: “Você teria um momento perdido porque a fotografia não ficou boa? Vá ao www.usa.canon.com/yoursecondshot e submeta sua fotografia para ter seu momento recriado, fazendo parte desse projeto.” Com câmeras desenvolvidas para clicar em baixa luminosidade, a campanha publicitária da Canon, veiculada na televisão e em redes sociais como o facebook e o twiter, promete recapturar “momentos que estavam perdidos na escuridão; instantes que merecem um novo click”. “Estamos dando de volta a pessoas reais seus momentos de vida. Histórias não devem ser perdidas no escuro”, afirmam os slogans da campanha, que se funda enfaticamente na ideia de que “fazer parte desse ‘projeto’” é participar de um movimento coletivo, inclusivo, atual, inovador, inédito − é ser contemporâneo.
O que possivelmente pode ser considerado ridículo – o fato de a imagem do second shot jamais ter o sentido da imagem original – não parece significar empecilho para as dezenas de pessoas ‘reais’ que, por iniciativa própria, se candidatam para integrar o ‘projeto’. A despeito do oportunismo de obter financiamento para novas viagens, festas ou encontros, os participantes do ‘projeto’ defendem em seus depoimentos a ideia de que uma imagem mais limpa e nítida seria mais legítima para guardar, na memória, aqueles momentos significativos de suas vidas. O investimento da propaganda centra-se, explicitamente, no estímulo ao controle da memória a partir de um bisturi digital que não atua sobre a imagem pronta – como fazem os softwares de tratamento de imagem –, mas que intervém limpando esteticamente as imperfeições do acaso, as vicissitudes do imprevisto, a nebulosidade da lembrança. Por que motivo, no entanto, poderia parecer valioso construir uma imagem artificial, embora perfeita, para constituir nossas lembranças? Por que razão as pessoas se candidatariam a expor suas experiências mais pessoais em troca de uma ‘chance’ de produzir uma imagem esteticamente ‘exata’?
Na realidade, a campanha não vende apenas novos sistemas de operações digitais; mais importante do que isso, ao articular de maneira muito especial fotografia e memória, instante e acontecimento, ela anuncia uma produção subjetiva própria da contemporaneidade, produção que, por sua vez, tem implicações políticas e existenciais importantes. Conceber a possibilidade de repetir acontecimentos significativos apenas para que a imagem possa ser refeita de modo estético ‘mais apropriado’ é algo tão próprio da atualidade quanto desejar o gerenciamento e o controle não apenas do presente, mas principalmente do passado.
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