Entre o homem comum e a história há um abismo, muitas vezes inacessível, incontornável. Sim, isso particularmente me fascina, principalmente quando estou diante das fotografias que venho adquirindo e colecionando há mais de trinta anos. E é exatamente esses retratos – perdidos, esquecidos, abandonados, jogados na lata do lixo da história e deslocados do seu universo de intimidade – que pretendo discutir um pouco neste primeiro texto. Como será que podemos reintegrá-los dignamente à cultura e à cronologia da fotografia?

Estúdio Foto Muito Bom, Marília (SP)
Semana passada, em minhas andanças pela cidade, me deparei com um lote de 25 fotografias muito interessantes. Retratos de jovens japoneses realizados na década de 1950 (ou de 1960, no máximo), na cidade de Marília, estado de São Paulo, num estúdio denominado Foto Muito Bom, com carimbo sem identificação do endereço ou do fotógrafo. Não resisti! Mesmo sabendo que seria difícil a tarefa de identificar os jovens fotografados e até mesmo o estúdio, me apropriei destas imagens para agrupá-las em minha pesquisa sobre “fotografias deserdadas”.
É curioso exercitar nossa imaginação e ver que esses jovens de origem japonesa da cidade de Marília estavam se deixando fotografar como seus ídolos do cinema – a doce Audrey Hepburn, o rebelde James Dean, o cadete Elvis Presley. Sabemos que na região havia uma predominância de imigrantes japoneses que lá se instalaram a partir das primeiras décadas do século XX, mas o interessante é constatar que os sonhos e os desejos disseminados pela nascente cultura industrial já exerciam enorme influência. Até mesmo esse fotógrafo desconhecido desenvolveu uma “pegada” para retratar os jovens como se fossem os grandes artistas dos estúdios norte-americanos de cinema. Tenho dúvida se a origem do conjunto é do próprio estúdio ou de algum desses jovens que colecionou os retratos dos amigos. Mas é esse mistério que enriquece qualquer discussão sobre aquilo que consideramos memorável.
Quem me conhece, sabe que tenho enorme interesse (e pretensão) de refletir e escrever sobre esta fotografia residual, que foi desalojada de seu ambiente originário, ou seja, sobre a imagem que, desconectada de seus elos e entes queridos, tenta reencontrar outro percurso para se inserir numa nova relação sócio-cultural. O que temos são fragmentos visuais coletados ao longo do tempo, que se tornaram praticamente desconhecidos – silenciosos e anônimos – mas que clamam para serem (re)significados e terem uma nova e merecida visibilidade. Acredito que exista uma espécie de memória fotográfica coletiva onde todos os rituais e celebrações estão devidamente documentados e com o passar dos anos se transforma no espelho fiel da imaginação humana.
Vilém Flusser defende que a comunicação humana é um processo artificial. Nós criamos a necessidade de nos comunicar porque temos medo da morte e da solidão. Diante disso, se entendermos a fotografia como um produto dessa comunicação humana, é possível perceber que fotografamos porque desejamos estender a vida dos fotografados para além da morte. Ou seja, que o Outro sobreviva no tempo com a beleza e a energia em que foi flagrado – e por isso valorizamos as fotografias, anônimas ou não, que foram produzidas também para representar a cumplicidade entre os envolvidos no ato fotográfico.

Autoria desconhecida
O jogo e a encenação são próprios da fotografia amadora (e talvez de quase toda a fotografia), seja porque sempre tem a intenção de registrar um momento especial, seja porque fotografar exige certa reverência fantasiosa e, ao mesmo tempo, uma forte ruptura com o cotidiano. Sempre estamos preparados para ser fotografados e isso significa que nada é espontâneo nessa interação. Por exemplo, a mulher ao lado que me olha hoje através do espelho, teve seus olhos voltados somente para o fotógrafo. Que relação é essa que aflora através da mediação fotográfica?
Dar visibilidade a estas imagens que se repetem à exaustão, entendidas também como fotografia vernacular, é evidenciar não apenas a necessidade que o ser humano tem de exibir-se, mas reforçar a idéia de como o universo cultural criado pela fotografia tornou-se natural, quase habitual. Por isso, ao nos depararmos com um conjunto de fotografias – um álbum familiar ou uma série de retratos – sentimo-nos parte dele, pois não temos grandes certezas do que ele representa, mas há uma visibilidade que traz um nexo de possível proximidade com os envolvidos. Nesses retratos, quase sempre as pessoas nos são muito familiares, pois o inconsciente coletivo atomiza nosso olhar amoroso sobre esses desconhecidos íntimos.

Zezinho, Estúdio Reis, Bauru (SP)
O que me encanta nessas fotografias que venho colecionando é a propriedade que elas têm para desencadear no observador múltiplas e diferentes conexões. É como se tivéssemos a capacidade de retirar as diversas camadas que cobrem a verdadeira identidade do retratado e com isso tentar desvendar alguns dos artifícios do fotógrafo. Qual é o valor de uma imagem fotográfica senão sua capacidade imensa e singular de ficcionalizar o cotidiano? Este estranho retrato do anão Zézinho, realizado no Estúdio Reis da cidade de Bauru, em 1949 (únicas inscrições anotadas no verso), gera uma inquietante dúvida: que importância tem a fotografia como documento e memória? Que mensagem evoca essa imagem que vacila entre a máscara da tragédia e a realidade de um cenário indiferente?
Ao mesmo tempo, queremos atribuir importância a profissionais ainda desconhecidos e que de alguma forma a qualidade de sua produção os aproxima de um fazer extraordinário. Acredito que muita gente tem perseguido essas questões, mas é interessante também pressupor como a mais simples das fotografias pode ser desconcertante e entender como seu fazer e sua cultura foram incorporados pelos amplos setores populares. A fotografia trouxe para todos os cidadãos a experiência da representação, pois apesar de sua permanente luta entre a objetividade documental e a sua potência ficcional, ela é naturalmente mobilizada para esta última.
A fotografia materializada permite um espaço de liberdade interpretativa que revoluciona nossa imaginação. Meu interesse também se fixa sobre os motivos que levam essas fotografias a serem progressivamente “deserdadas”; serem excluídas do seu fluxo natural. Cada vez mais, as pessoas simplesmente descartam as imagens porque já não percebem nelas as possíveis conexões com essas figuras fantasmagóricas impressas no papel, que já não dizem nada para as novas gerações. Impregnadas de memórias, em minha opinião, elas são descartadas porque são ameaçadoras, pois a qualquer momento podem fazer emergir fatos e relações indesejados, desencadear lembranças que deverão ser apagadas.
Para finalizar o primeiro texto desta série, registro um pequeno e sincero pensamento do pintor e gravador Iberê Camargo: “a realidade é um enigma que o tempo não banaliza e o homem não decifra. Ela é a esfinge que nos devora”.
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