Em 2014, o Brasil esteve às voltas com duas efemérides: a Copa do Mundo e o cinquentenário do golpe militar. A realização da primeira supunha a construção ou reforma de várias arenas esportivas; a celebração do segundo, por sua vez, a construção de memoriais e monumentos em homenagem às vítimas da ditadura. Os estádios ficaram prontos e funcionaram bastante bem, a despeito das previsões pessimistas e dos protestos esporádicos contra os gastos excessivos. Já os memoriais, museus e monumentos planejados não viram a luz do dia. O último projeto de Oscar Niemeyer (1907-2012), o “Memorial da Liberdade”, dedicado à memória de João Goulart, presidente deposto pelos militares em 1964, era um destes. Os familiares do ex-presidente pretendiam que fosse erguido e inaugurado em Brasília em 2014, mas sua construção não foi sequer iniciada.
Todo monumento cristaliza narrativas de uma memória pública (e não apenas coletiva ou social). A memória pública da ditadura brasileira foi ganhando forma no processo de redemocratização, nos anos 1980. No memorial proposto pelo Instituto João Goulart estão presentes dois aspectos estruturantes dessa narrativa. Um deles percebe o golpe militar como uma interrupção no percurso da nação. Assim, encerrada a ditadura, o Brasil reencontraria seu caminho democrático (e, eventualmente, “popular”). Era de se esperar que um arquiteto com tão longa trajetória – marcada pela construção dos palácios governamentais da nova capital em Brasília –, fosse capaz de expressar com clareza e intensidade essa visão do golpe. No projeto, uma cúpula branca é trespassada por um triângulo vermelho em que se pode ler, em algarismos negros, “1964”. A homologia entre a cúpula do memorial, mortalmente ferida, e a hemisfera azul estrelada, por meio qual a República brasileira é representada na bandeira nacional, dramatiza ainda mais a sensação de ruptura.
Haveria ainda muito a comentar a respeito deste “monumento” – como, por exemplo, a semelhança entre seu partido e a famosa litografia revolucionária de El Lissitzky “Golpeai os brancos com a cunha vermelha” (1919) –, mas gostaria de chamar a atenção para um elemento marginal da maquete eletrônica (da qual esta imagem é um frame). Consideremos, por um momento, que não se trata de uma maquete, mas de um instantâneo fotográfico. Em vez de contemplá-la, olhemos de relance. As figuras humanas estão ali, como de praxe, para ilustrar a escala e a perspectiva do projeto. Mas a “seta vermelha”, assim designada pelo arquiteto, além de trespassar a cúpula, também destaca duas dessas figuras: dois homens, um de terno, outro em mangas de camisa, que se aproximam e estendem a mão. Essa cena, flagrada por nosso instantâneo, não cumpre qualquer objetivo na maquete. É um gesto disfuncional, um sintoma (ou punctum, como poderia tê-lo chamado Barthes). Opondo-se à interrupção, mas assinalada por ela, o cumprimento entre os homens introduz – inconscientemente, creio – o segundo aspecto estruturante da memória pública da ditadura: as condições dessa rememoração teriam sido “pactuadas” no contexto de uma longuíssima redemocratização, inicialmente chamada de “abertura” – um período que se estendeu de 1974 a 1985 e que teve como um de seus marcos fundamentais a Lei da Anistia, de 1979. Estes dois traços de nossa memória da ditadura (a interrupção e a pactuação, o instantâneo e a duração) são experiências temporais que reforçam-se antes de contrapor-se (ou reforçam-se ao contrapor-se). Passadas várias décadas, a necessidade de testemunhar sua interdependência está tão viva na mente de um arquiteto centenário e sua equipe como se tivessem acabado de acontecer.
Uma vez estabelecido que a ditadura havia sido este interlúdio trágico na trajetória do Brasil e dos brasileiros, não surpreende que os primeiros eventos que marcaram o imaginário político do período subsequente o fizessem sob o signo do retorno e, de alguma maneira, da reconciliação com um passado anterior ao golpe. A volta dos exilados, a libertação dos presos políticos e retorno ao poder de políticos cassados, como Leonel Brizola e Miguel Arraes – notoriamente odiados pelos militares –, corroboravam a sensação de que a história voltava aos trilhos.
Nos anos que seguiram à redemocratização, a ditadura foi imaginariamente colocada entre parênteses. Olhar para o futuro era a tônica dominante de todos os atores durante as décadas de 1980 e início dos 1990: na economia, tratava-se de vencer o “dragão da inflação”; na vida civil, a prioridade era assegurar os novos direitos que haviam sido estabelecidos pela constituição de 1988; e finalmente, no campo político-partidário, apostava-se a perspectiva de eleger governos de esquerda.
Enquanto no contexto do movimento pela anistia, presos políticos e exilados eram os personagens mais frequentemente convocados para representar as vítimas da ditadura que era urgente redimir, após 1985, a figura emblemática da vítima será, cada vez mais, o “torturado” – em larga medida, em virtude da criação do grupo Tortura Nunca Mais, organização civil fundada por ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos. Antes de completar um ano existência, em 1986, a organização já encomendava ao mesmo Oscar Niemeyer um monumento. Desde sua primeira versão, o tema do trespassamento, retomado posteriormente no Memorial a João Goulart, estava presente. Mas aqui a violência não se volta contra a República, mas contra um indivíduo. A escultura pública, que o próprio arquiteto denominou “arco da maldade”, jamais foi construído, mas perpetuou-se como símbolo oficial do grupo.
A despeito da assinatura célebre e da força dramática do projeto, a organização nunca conseguiu reunir recursos suficientes para sua construção. As restrições talvez não tenham sido apenas financeiras, nesse caso. O projeto inicial, para o Rio de Janeiro, previa um arco de 25 metros e uma versão posterior, cuja pedra fundamental foi lançada em Minas Gerais em 1995, mediria 60 metros de extensão. Quanto mais o arco se estendia (de fato, uma “lança” que, segundo o próprio Niemeyer, representaria os longos anos da ditadura), mais o próprio poder do Estado e a força de seus instrumentos de violência monumetalizavam-se, em detrimento de suas vítimas, cada vez mais frágeis.
O “Arco da Maldade” passou 26 anos à espera de uma oportunidade para deixar de ser apenas um projeto. Em fins de 2012, essa oportunidade surgiu – e de forma surpreendente, quase surrealista. A marca internacional de tênis Converse, da All Star, lançou no Brasil uma linha de calçados inspirada na obra de Niemeyer após a morte do arquiteto. Um destes modelos, o Chuck Taylor All Star Chukka Boot, segundo o release oficial do fabricante, foi “construído” em camurça natural e “inspirado no monumento Tortura Nunca Mais” (no interior, o forro em couro trazia uma ilustração do arquiteto em solidariedade aos camponeses do Movimento dos Sem-terra).
Como foi possível que o mais eloquente monumento acerca da ditadura brasileira tenha se transformado, 25 anos depois, em um sapato esportivo? Como explicar a conversão da promessa de que nunca mais haveria tortura na certeza de um caminhar mais confortável? Como não espantar-se que o sangue escorrido das vítimas tenha coagulado na forma de um cadarço que pende elegante? Não chega a nos surpreender que o mercado e a cultura do consumo mostrem-se hoje mais fortes que o braço do estado, sendo capazes de apropriar-se até das formas de representação mais violentas para travestir de arte o fetiche da mercadoria. Mas aqui, como em todo fetiche, há também um gesto de radical deslocamento. Um gesto que não poderia ter outra origem senão a denegação fundamental que pavimentou a transição brasileira, na dupla forma da interrupção e da pactuação que tanto se opõem como se complementam.
Nada melhor que um par de tênis para tornar explícita essa dualidade. Enquanto um pé avança e propõe:
– Eu sei que houve tortura no Brasil, mas é importante seguir em frente.
O outro, já engajado no próximo passo, recapitula:
– Eu sei que ainda há tortura no Brasil, mas foi importante seguir em frente.
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Enquanto esperam pela continuação deste post, leiam e, caso concordem, subscrevam o abaixo assinado para dar novo destino ao Memorial Castelo Branco, em Fortaleza.
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