Fotografias deserdadas II – Vivian Maier

[19.set.2011]

Quem me conhece sabe que tenho apreço especial pela fotografia que por algum motivo não ganhou visibilidade pública. Algumas vezes, nem privada, através dos álbuns ou das caixas de sapato. E é essa exatamente a história recém descoberta da norte-americana Vivian Maier (1926 – 2009). De mãe francesa e pai austríaco, ela trabalhou como babá por mais de quarenta anos, mas sempre fotografou – no começo com uma Kodak Brownie e, a partir de 1952, com uma Rolleiflex, quando sua produção teve uma radical transformação.

A história é incrível. Vivian, que fotografou por mais de meio século, nunca teve casa própria e no final da vida teve que adequar-se a um pequeno espaço e, para isso, deixou seu arquivo e seu equipamento num depósito. Há alguns anos, o locador se apropriou desse acervo para quitar parcialmente a dívida adquirida por ela com o aluguel. Na mesma ocasião, em 2007, John Maloof, corretor imobiliário e historiador amador, buscava informações e imagens sobre determinada região de Chicago para escrever um pequeno livro. Ele se deparou com algumas caixas de negativos de Vivian numa casa de leilão da cidade e, pouco a pouco, descobriu um tesouro. Encantado, acabou adquirindo posteriormente o restante do material, ampliando seu acervo para cerca de cem mil negativos, algumas cópias vintage, filmes 16 mm e gravações em áudio, produzidos entre as décadas de 1950 e 1990 .

Vivian Maier, autorretrato, Nova York, 1955

O nome Vivian Maier foi encontrado escrito a lápis num dos envelopes de negativos. Maloof pesquisava referências sobre a fotógrafa quando, em 2009, soube de seu falecimento através dos obtuários publicados em jornais. Ao mesmo tempo em que o mistério ganhou complexidade, mais densidade dramática foi adquirindo a coleção de fotografias até então desconhecida. Maloof foi organizando, revelando e mostrando o material. Sem dúvida, estava diante de uma grande fotógrafa que registrou com regularidade as cidades de Nova York e Chicago, entre outras. Atualmente, com livro publicado, galerias comercializando o trabalho e exposições circulando pelo mundo o nome é uma novidade para a história da fotografia.

Uma dúvida me persegue: Vivian simplesmente abandonou suas fotografias? Quis renunciar ao abandoná-las? Pelo histórico disponível, sua situação financeira nos últimos anos parece ter se tornado realmente limítrofe, e isso provavelmente a obrigou a tomar esta decisão. As fotografias foram deserdadas mas, de qualquer modo, os deuses da luz conspiraram a favor da sua permanência e conseguiram um guardião que tornou pública uma história de intensa paixão pela fotografia.

Há uma pertinência e um interesse contemporâneo em descobrir fotografias antigas. Isso se dá principalmente através da enorme procura pela fotografia vernacular, do cotidiano, e de autoria desconhecida. Esse não é o caso de Vivian Maier cujas fotografias celebram a vida e exploram com emoção o dia a dia do cidadão anônimo que dinamiza e movimenta a cidade. Mas, nesse caso, as fotografias tem uma diferença: requerem um olhar mais demorado, mais afetivo.

Vivian Maier, Nova York, 1959

Ela desenvolve um gênero narrativo espontâneo, culturalmente associado às suas próprias histórias, dramas e inquietações pessoais. Para Vivian, a fotografia é como uma manifestação essencial no processo de construção da memória, que mostra sua importância quando exige um olhar mobilizado, ou seja, um olhar interessado em enfrentar a ampla rede de conexões evocada pelo fotógrafo. Essa representação sensível da experiência humana foi construída a partir de uma percepção própria da idéia do sagrado no cotidiano.

Vivian Maier, Flórida, 1957 / Nova York, 1954

Vivian desenvolve um raciocínio fotográfico complexo que ainda não posso avaliar com muita precisão. Ora as fotografias me parecem excepcionais (talvez pelo fato de terem permanecido por tanto tempo inéditas); ora elas me parecem padronizadas demais (justamente porque estão em plena sintonia com os trabalhos de alguns fotógrafos atuantes no período). Esse paradoxo que surge ao tentar compreender sua fotografia está em plena harmonia com a ambiguidade vivida pela modernidade: de um lado, a necessidade de ruptura e, de outro, o desejo de afirmar algumas conquistas. Aliás, como em suas imagens, que oscilam entre a racionalidade pragmática da composição plástica e a emoção momentânea do fluxo contínuo da vida no espaço urbano. Uma singularidade difícil de alcançar, mas que fica explícita parcialmente nas fotografias agora disponíveis de Vivian Maier.

Como vemos, sua inspiração é o Homem em sua essência e naturalidade. Como se buscasse indagar o porquê da sua existência, Vivian documenta a cidade e os seus grandes vazios com a presença humana que iconiza sua questão mais transcendental: afinal, qual é o propósito da vida? Ela investe sua fotografia de algumas particularidades que buscam traduzir uma espessura temporal extremamente significativa.

Como foi possível esconder estas fotografias por tanto tempo? Que destino teriam essas fotografias se Maloof não estivesse procurando informações sobre a história da cidade de Chicago? Enfim, para mim é importante destacar cada ação que valoriza a imagem técnica, particularmente a fotográfica, seja ela produzida em qualquer tempo. Interessa-me sempre inscrever imagens na história e ampliar sua circulação. Podemos compreender melhor o presente se nos confrontarmos com o passado.

Para encerrar essa nova incursão sobre “fotografias deserdadas”, quero lembrar que a produção técnica de imagens na contemporaneidade é de outra ordem – principalmente quanto ao aspecto quantitativo. Talvez a fotografia seja a mídia que mais mudou nas últimas décadas. Quero lembrar que o filme, o suporte fotográfico, a mídia impressa que viabilizou a circulação, tudo isso está materializado e confinado num espaço finito, que garante de certo modo uma recuperação fantástica, como foi feito com o trabalho de Vivian Maier. Já quanto à produção técnica contemporânea, em que a matriz é digital e a circulação se dá através de arquivos imateriais no espaço infinito da rede, como será possível recuperar uma história daqui a 60 anos?

Mas isso é assunto para outra reflexão…

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Jornalista, curador e crítico de fotografia, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professor e diretor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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