Desde o fim da ditadura, o “torturado” foi a primeira e mais perene encarnação de suas vítimas. E, no entanto, nas duas décadas que se seguiram ao fim da ditadura, nenhuma outra figura foi tão cercada de silêncios: silêncio a respeito dos torturadores, igualmente protegidos pela anistia; silêncio dos torturados, em virtude do trauma e do receio de que fossem considerados “delatores” de seus companheiros; silêncio em virtude de que seu testemunho, preso ao passado, não servisse ao futuro; silêncio em torno da derrota da luta armada – da qual muitos haviam participado –, uma vez que foram os chamados setores “democráticos” da esquerda que se apresentaram então como os vitoriosos “fiadores” da transição. Uma das poucas exceções foi o documentário de Lúcia Murat, Que bom te ver viva, de 1989, que mesclou cenas de ficção ao testemunho de oito mulheres que haviam sido presas e torturadas.
A representação icônica mais frequente do torturado não foi a lança de concreto concebida por Niemeyer para o Movimento Tortura Nunca Mais [ver Parte I], mas uma das mais antigas formas de suplício documentadas no Brasil: o pau-de-arara. Sua primeira aparição ocorre em uma gravura de Debret em que um feitor castiga um escravo. A versão original é uma aquarela de 1828. Debret anotou a lápis, em francês, “Feitores corrigant (sic) des nègres à la roça”. Não sei se o método já se chamava “pau-de-arara” na época, pois o que o torna semelhante às hastes onde se empoleiravam os brasileiríssimos papagaios é a suspensão do supliciado.
O pau-de-arara migrou das fazendas de escravos para as delegacias comuns e destas para salas de tortura da polícia política. No bojo dessa migração, o pau virou ferro. E como nos relata um estudante mineiro, preso em 1970, ocupava um lugar privilegiado no rito macabro das prisões políticas brasileiras. Em torno dele gravitavam outros procedimentos:
O pau-de-arara consiste numa barra de ferro suspensa que é atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho, sendo o “conjunto” colocado entre duas mesas, ficando o corpo do torturado pendurado a cerca de 20 ou 30 cm. do solo. Este método quase nunca é utilizado isoladamente, seus ‘complementos’ normais são o eletrochoque, a palmatória e o afogamento.
Não podemos afirmar que seja a forma mais comum de tortura no Brasil, mas é seguramente sua representação mais popular. Uma busca por imagens na Internet, relacionando as palavras tortura e ditadura, nos oferece sempre um pau-de-arara como primeira opção. Ainda que cenas de tortura sejam raríssimas em livros escolares, a única representação que encontrei em um capítulo dedicado à ditadura corresponde a esse suplício. Na internet, uma fotografia se destaca por sua aparência documental, conferindo-lhe aura de autenticidade – corroborada pela aparência do jovem e o ambiente datado – e contribuindo para a sua difusão.
Tratava-se, no entanto, de uma encenação; ou melhor, uma demonstração feita por um repórter na redação do “Jornal Movimento”, semanário de esquerda que circulou entre 1975 e 1981. A manchete do jornal, que publicou a matéria em página dupla, não deixa margem à dúvida: o pau-de-arara era um “método de investigação” genuinamente nacional - “tortura à brasileira”. De fato, em um país que foi chamado, no século XVI, de Terra dos Papagaios, a brasilidade do pau-de-arara parecia incontestável.
Não nos surpreende, portanto, que o primeiro monumento referente às vítimas da ditadura efetivamente erguido no país tenha sido um pau-de-arara. Resultou de concurso promovido pela Governo de Pernambuco em parceria com braço local do Grupo Tortura Nunca Mais, em 1988, vencido por um projeto de escultura desenvolvido por três arquitetos. Trata-se de um quadrado parcialmente vazado, de 7 x 7 metros, com uma figura humana, pouco maior que o tamanho real, pendurada no centro. Sua construção não foi imediata – apenas em 1993, cinco anos depois do concurso, foi erguido às margens do Rio Capibaribe, cartão postal da cidade de Recife, em uma área que o governo pretendia reurbanizar. Sua realização só foi possível graças ao apoio financeiro da Associação Brasileira de Cimento Portland – ABCP, que pretendia transformar a área em um parque de esculturas feitas com cimento. O fato de que um monumento político dessa natureza tenha servido igualmente ao marketing de empresas que estiveram entre as maiores beneficiárias das grandes obras de engenharia civil realizadas pela ditadura, na década de 1970, não deixou de gerar polêmica.
Mas o que me interessa sublinhar aqui é que os paus-de-arara no Brasil não carregam apenas aves e prisioneiros políticos. De fato, em particular no Nordeste, desde a década de 1940, pau-de-arara é a designação de um meio de condução precário que transportava – em viagens desconfortáveis que atravessavam milhares de quilômetros – migrantes nordestinos, refugiados das secas, em busca de emprego no Sul mais desenvolvido e industrializado. Assim, o monumento ao pau-de-arara, patrocinado por uma associação de empresários de cimento, torna-se igualmente uma sombria referência ao meio de transporte que abasteceu de mão-de-obra barata a explosão de construção civil em metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo por várias décadas. Nessas cidades do Sul, por mais um deslizamento do significante, pau-de-arara passa a designar também qualquer migrante nordestino. O caminhão pau-de-arara que, no filme biográfico de Fábio Barreto, transportou o presidente Lula menino para a cidade grande, orgulha-se de ser, tal como seu homônimo a serviço da tortura, genuinamente brasileiro.
Com a eleição de Lula, o ciclo de ambiguidades envolvendo o pau-de-arara encontra sua expressão máxima. Um pau-de-arara presidente era o melhor modo do país vingar-se das elites e da violência contra os pobres, da qual a polícia e seus paus-de-arara não passavam, desde os tempos da escravidão, de cruéis prepostos. Mas uma imagem revelada no contexto das investigações da Comissão Nacional da Verdade volta a nos inquietar.
Uma de suas principais contribuições foi dedicar um dos capítulos de seu relatório final a violações dos direitos humanos junto a camponeses e grupos indígenas. Distantes dos centros urbanos e das classes médias, estes grupos não faziam parte do panteão imaginário das vítimas da ditadura. Dessa iniciativa decorre uma das mais surpreendentes revelações desde que os trabalhos da Comissão se iniciaram: um fragmento de filme 16 mm, cujo original pertence aos arquivos da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Trata-se da formatura da primeira turma da Guarda Rural Indígena, que ocorreu em 5 de fevereiro de 1970, em Belo Horizonte, treinados por uma unidade de infantaria do exército brasileiro e pela polícia militar de Minas Gerais. Era constituída por 84 índios de diferentes nações. Na cerimônia, os índios desfilam de uniforme, botas e revólveres na cintura, juram diante da bandeira, fazem demonstrações de “defesa pessoal”, judô, e técnicas policiais de “condução de presos”. No final da apresentação, a Guarda Indígena encena um cortejo diante das autoridades, carregando um homem pendurado em um pau-de-arara. Por ocasião da cerimônia, um ministro discursou em nome do presidente Emílio Garrastazu Médici, exultando: “Nada até hoje me orgulhou tanto quanto apadrinhar a formatura […] da Guarda Indígena, pois estou certo de que os ensinamentos recebidos por eles, neste período de treinamento intensivo, servirão de exemplo para todos os países do mundo”. Três anos depois, a guarda já estava fora de controle e no final da década de 1970 será desmobilizada em virtude da excessiva violência empregada por seus membros no interior das reservas indígenas.
Esta sequência nos impressiona por provar que técnicas de tortura foram ensinadas aos indígenas e por deixar claro que, em algum momento, durante a ditadura, foram consideradas legítimas o bastante para serem apresentadas em uma cerimônia oficial, diante de um público de mais de mil pessoas, que incluía crianças. Representa ainda a mais sublime alegoria à brasilidade do pau-de-arara, que desfila sustentado nos braços dos primeiros habitantes da terra. A sequência sugere que a centralidade prática do pau-de-arara, percebida pelos prisioneiros, tinha também uma dimensão simbólica para os agentes da repressão. E nos faz ver que, sob a brasilidade do pau-de-arara, repousava perversamente tranquila a sua naturalidade.
Trata-se de uma imagem única, absolutamente singular. Durante a vigência da ditadura, a tortura não teve nenhum amparo jurídico – ao contrário da censura ou da incomunicabilidade do preso. A prática da tortura nunca foi assumida – e menos ainda publicamente celebrada. Só muito recentemente, alguns depoimentos isolados de militares, junto à Comissão da Verdade, admitiram sua existência. Como é possível que, em 1970, no auge da repressão, um desfile desta natureza tenha acontecido? Uma das respostas que nos ocorre exige que ultrapassemos o simples plano da evidência. Os índios são, nos marcos dos estatutos legais que os protegem, inimputáveis. Isto é, só podem ser julgados por um tribunal comum se for provada sua condição de completo aculturamento. Por mais confiança que tivessem os militares em seu poder e na proteção de seus superiores hierárquicos, sua condição de cidadão civilizado não lhes concedia nenhuma imunidade legal. A segunda dimensão alegórica deste cortejo se torna então inteligível, afinal, tratava-se de uma quinta-feira, antevéspera do Carnaval. Ostentada pelos braços inimputáveis dos índios brasileiros, os militares desfilavam sua própria impunidade. Impunidade que se converteria, também para eles, em inimputabilidade. E a tortura, entre índios e papagaios, nunca esteve mais perto da nossa natureza.
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