Enigmas da visibilidade II: da autenticidade do instante à autenticidade da eficiência

[02.abr.2012]

Na chamada da propaganda da Canon, quando Sofia é interrogada pelo locutor sobre qual o significado de ter refeito a fotografia, ela afirma ter sido a chance de recuperar o que deveria “ter dado certo na primeira vez e não deu”. Em seu depoimento, Sofia ‘reflete’: “Os grandes momentos escapam, e não temos oportunidade de reconhecê-los pelo que eles são. Quando se tem a oportunidade de observá-los, aí podemos olhar para trás e perceber que se tratava de um grande momento que não se tinha reconhecido”.

As histórias apresentadas no site afirmam que a “péssima” qualidade das fotografias – seja porque estavam borradas, sem detalhes ou com fundo escuro demais – as impossibilitava de representar momentos significativos: as fotografias originais não eram capazes de ativar memória ou constituir história; elas mentiam, confundiam ou despistavam o significado real dos acontecimentos. A imagem imprecisa não parece ser capaz de reencarnar nenhuma experiência, posto que está relacionada com significativa invisibilidade. É como se, nelas, não houvesse mais a presença do elo entre memória e instante. Na perspectiva de Dara – outra integrante do ‘projeto’ Second shot –, enquanto sua fotografia permanecia fora de foco, tremida ou escura, ela simplesmente parecia não existir como imagem (ficava “apenas em sua cabeça”). Seu depoimento não leva em conta a possibilidade de que “aquilo que existia em sua cabeça” provavelmente existia daquele modo e com aquela amplitude porque aquela imagem – turva e precária – existia como corpo e afeto.

Substituir a imagem ‘deficiente’ da história, privada ou pública, ficando em seu lugar um modo de memória claro, exato, limpo e asséptico parece estar em total consonância com as políticas de digitalização e reconfiguração do corpo; políticas que não apenas possibilitam o número gigantesco de cirurgias plásticas estéticas, mas também solicitam que o universo fotográfico da atualidade esteja cada vez mais vinculado a uma verdadeira moral de uma vida sem impureza. “Dar vida” à memória parece significar, na narrativa contemporânea do Second shot, a transferência de um virtual incontrolável para um atual limpo e otimizável (para usar metáfora bastante admirada nos dias atuais). O que se dá a ver é o imediatamente visível; o que se tolera ver é a aparente exatidão. O que suportamos admirar é o outdoor da menina Dove.

O que se fixa como imagem-fato é a imagem do outdoor, o rosto original não passa de rascunho a ser ultrapassado e apagado. Rascunho que, embora persistente (todo manhã ele emerge, novamente livre da maquiagem ou do bisturi eletrônico), solicita permanente correção. Se as imagens do presente, vinculadas on line e globalmente devem responder a essa formatação corpo-imagem liso e jovem, por que nossos álbuns de memória não deveriam também ser reformatados à luz desse sonho tecnocientífico?

Como percebe Emmanuel Carneiro Leão, a técnica tornou-se domínio de tudo; já não é apenas uma intermediação incompleta ou parcial entre o homem e a natureza. Tudo se vê compelido a viver e a determinar-se por seu caráter limpo e eficiente. “É a atmosfera em que nos movemos, vivemos e somos. Não é apenas uma totalidade entre muitas outras, mas a totalidade que tudo absorve e decide.” Nessa simultaneidade e onipresença, a eficiência ocupa o lugar da progressão, tendendo a excluir e inviabilizar outras imagens. O sistema contemporâneo da técnica em expansão institui, desse modo, uma nova ecologia da imagem e, sobretudo, da memória. Trata-se de uma autenticidade fotográfica que se afasta progressivamente de seus pilares modernos. A constituição da legitimidade fotográfica como figura privilegiada do campo mnemônico não esteve sempre vinculada a uma qualidade estética estritamente. A autenticidade da fotografia moderna ou, pelo menos, do que ela veio a ser modernamente fundava-se no estreito laço entre instante e visibilidade.

Anônimo. Barricadas da Comuna de Paris, Hôtel de Ville, 1871.

Pierre-Ambroise Richebourg. Barricadas da Comuna de Paris, Hôtel de Ville, 1871.

Os borrões e os ‘fantasmas’, causados pelas longas exposições, não significavam sempre abalo significativo na autenticidade fotográfica e foram, durante algum tempo, tolerados como aberrações inevitáveis da visão da máquina e até mesmo desculpados pelos espectadores. Se pensarmos nas vistas instantâneas da Comuna de Paris, por exemplo, vamos notar que não se reivindicava que capturassem exatamente o movimento – a maioria dos leitores teria concordado com a afirmação de que isso não poderia ser feito –, mas que exibissem, em troca, seleções da realidade, pedaços de eventos que ocorreram, operando de modo fragmentário, como relíquias, satisfazendo uma demanda de posse temporal e presença dos acontecimentos. As vistas instantâneas (que não eram instantâneos, pelo menos nos moldes que hoje os identificamos) articulavam a noção de autenticidade por meio de outros dispositivos que ‘compensavam’ a impossibilidade de congelar os movimentos.

Mais tarde, quando a fotografia se torna, de fato, ‘instantânea’, quando se efetiva a passagem de uma fotografia rápida ao paradigma da instantaneidade, tal autenticidade ganha contornos próprios que, entretanto, não estão exclusivamente vinculados à exigência de ‘eficácia’ e ‘limpeza estética’ que percebemos hoje em projetos de higienização da memória como os do Second shot. Antes de qualquer coisa, a legitimidade fotográfica esteve calcada na ideia de que havia uma capacidade maquínica de ver e, sobretudo, de se apoderar, sincronizar e arquivar instantes temporais.

Em 1874, o astrônomo Jules Janssen criou o “revólver astronômico” – sistema de obturador controlado por um mecanismo cronométrico que girava sobre um daguerreótipo circular –, para documentar no Japão o raro eclipse produzido pelo trânsito de Vênus sob o Sol, ocorrido apenas cinco vezes desde 1639 (quando foi pioneiramente observado) e que, segundo as expectativas da época, só se daria novamente em 2004. Seu instrumento era capaz de fixar uma sequência de 48 instantes fotográficos em 72 segundos. Janssen participava de uma grande expedição científica, com várias equipes em lugares diversos no mundo, programa que mobilizou durante anos a comunidade mundial e arrecadou significativos incentivos financeiros.

Jules Janssen, O trânsito de Vênus (Daguerreótipo), 1874

As fotografias de Janssen obtiveram especial credibilidade, identificadas como as mais mais precisas por capturar, numa única placa sensível, a duração do trânsito através de “instantes constituidores”. Seu sistema permitia, segundo palavras suas, tomar imagens “no momento em que o contato vai-se reproduzir”. Embora o trânsito de Vênus fosse lento o suficiente para ser visto a olho nu, o revólver fotográfico possibilitava a autoinscrição através da luz de um processo temporal efêmero numa imagem permanente, que poderia ser estudada no futuro. Por meio dessa experiência Janssen tornou a fotografia um método humano de ‘tocar’ visualmente a passagem do tempo, transformando-a em instrumento de autoinscrição de uma temporalidade inacessível. Sua experiência produz um fato simbólico e expressivo na relação entre autenticidade da imagem, tempo e fotografia. A fotografia moderna é capaz de acessar e armazenar o tempo invisível, fluido e cada vez mais efêmero. Trata-se de marca importante que inaugura o que se constituirá como elo fundamental entre a imagem da memória e a fotografia moderna: sincronismo entre o instante e a obtenção de imagens maquínicas. Nessa contiguidade, a fotografia encontrava, então, uma espécie de feição e caráter; o tempo, por outro lado, encontrava na fotografia um rosto, revelado no trânsito dos planetas. Configura-se, nessa perspectiva, uma espécie de ‘contiguidade instantânea’ que adquire um forte sentido de visibilidade. O que a fotografia fazia ver era a ideia de coincidência entre o clique e o tempo do instante.

Kodak, publicidade, 1913

Não por acaso a Kodak defendia, em 1912, que a “câmera capacita seu feliz proprietário a voltar ao passado, através da luz de sua própria visão, a cenas que de outro modo desapareceriam da memória e seriam perdidas”. Sendo possível, que a imagem estivesse legível, clara e esteticamente apreciável; esse critério, entretanto, não se sobrepunha ao fato de a imagem ser fruto de uma pretensa coincidência com um agora de reconhecimento; a visibilidade da imagem estava relacionada com uma capacidade da fotografia apreender um momento irrecuperável da vida, mesmo que a imagem desse momento não estivesse absolutamente perfeita. Refazer propositalmente esse instante – ainda que conquistando absoluta nitidez – desataria, na perspectiva moderna da fotografia, seu elo com a realidade e seu certificado de presença; desenlaçaria a contiguidade entre instante fotográfico e instante temporal. Reconstruir o passado fotográfico por uma demanda de eficiência estética interditaria sua ordem fundadora.

Tal ordem já não parece fundante hoje. Tudo indica que esteja sendo instituído um novo tratado de importâncias cujo eixo central seja um relevante manancial de novidades tecnológicas. Como afirma o instigante pensamento de Paula Sibilia, esse manancial condensa uma das aspirações mais audazes de nossa civilização: “administrar a memória humana como se fosse o disco rígido de um computador. Uma ambição que suscita tanto fascínio como espanto, e que até pouco tempo atrás não teria ultrapassado os ambíguos terrenos da especulação filosófica ou artística.”

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Leia também: Enigmas da visibilidade fotográfica no mundo contemporâneo

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Fotógrafa, pesquisadora, doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense, Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB).

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