La Ciotat: de volta para o futuro*

[17.out.2011]

Charles Baudelaire, c. 1860

Proust escreveu que a “imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhes seja imposta por nossa certeza de que essas coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento perante elas. Vejam esta fotografia de Baudelaire, feita por seu amigo Nadar. Parece estática para nós, hoje em dia, mas há todo um movimento ali. Um movimento que o poeta procurou expressar em um soneto dedicado ao fotógrafo. Depois de comparar a experiência de posar no estúdio fotográfico a morrer de uma “dor saborosa”, “misto de êxtase e horror”, o poeta conclui:

Eu era como a criança à espera do espetáculo,
Odiando o pano como se odeia um obstáculo…
Mas a fria verdade enfim se revelou:
Eu morrera sem susto, e a terrível aurora
Me envolvia. – Mas como! o que então se passou?
O pano já caíra e eu não me fora embora.

Pensemos esta estranha temporalidade instalada pelo soneto de Baudelaire: um tempo em que se permanece na antecipação do que já foi, em que o espetáculo acaba, sem ter começado, e onde se fica apesar de ter-se ido.  Este tempo que não é outro se não a nossa inquieta imobilidade “agora”.

A imobilidade instantânea da fotografia moderna é radicalmente diferente da sua fixidez no século XIX, quando imagens que se moviam eram praticamente desconhecidas do público. Para a esmagadora maioria dos espectadores da época, a fotografia não carecia de movimento, e foi apenas com a difusão do cinema que esta percepção mudou radicalmente.  A história tradicional da “sétima arte” (a fotografia, como vocês sabem, passou longe de ser a “sexta”) terminou por nos habituar a ler as cronofotografias de Muybridge, Londe e Marey como “precursoras” do dispositivo cinematográfico.

Etienne Jules Marey, 1886

Assim, em “Um Salto em Distância do Sr…” (1886), de Etiènne-Jules Marey, vemos a decomposição do salto em sete posições, e damos por óbvio o esforço, tecnicamente muito mais complexo, de abarcar em uma só imagem todo o arco do movimento. Os historiadores e teóricos do cinema lançaram um olhar míope sobre estas imagens, observando nelas o fracionamento da trajetória em posições sucessivas – seu princípio cinemático ­– e relevando suas (frágeis) tentativas de terminalidade e completude: o homem finaliza seu salto, o nu (de Muybridge) desce toda a escada. O que assistimos nas primeiras duas décadas do século XX é a progressiva domesticação do movimento por meio de sua subordinação à narrativa, no cinema clássico, e seu abandono pela fotografia moderna, que se desenvolve a partir dos códigos e da estética do instantâneo.

Mas alguma coisa ficou ali perdida pelo caminho. Não exatamente um movimento puro, livre, selvagem, indeterminado, mas a busca pela duração própria das coisas e dos acontecimentos, independentemente das tramas em que as envolvemos e dos aspectos significativos que buscamos extrair delas. Algo que encontrou na espera, seu refúgio. Pois a espera não é apenas expectativa de algo, é abertura da duração naquele que espera à multiplicidade de durações que o rodeiam: “minha própria duração”, ensina Deleuze em “Bergsonismo”, “tal como a vivo na impaciência da espera, por exemplo, serve para revelar outras durações que pulsam em outros ritmos que diferem de natureza com a minha”. Por intermédio da espera o fotógrafo abria-se à multiplicidade de durações do mundo.

A espera foi último abrigo do tempo no tempo da fotografia instantânea, mas havia um fio perdido na meada dos enredos cinematográficos. Foi Hiroshi Sugimoto quem deu a melhor expressão plástica a este novelo. Em sua famosa série “Theatres”, o tempo de exposição das fotografias coincide com o tempo de projeção de um filme numa tela de cinema. A fotografia é “um modo de produzir fósseis a partir do presente”, declarou, sublinhando que considerava estes decalques negativos de plantas e animais como dispositivos pré-fotográficos de registro e como as formas mais antigas de arte. Ali, portanto, perdida em meio a um turbilhão de fotogramas, jazia adormecida, como a radiação fóssil de uma estrela extinta, a sombra luminosa de uma imagem multiduracional.

No extremo oposto das dilatações temporais de Sugimoto e Michael Wesely, estão algumas das imagens em movimento que começam a ser produzidas pelas câmeras digitais full frame que se tornaram o equipamento padrão tanto dos fotógrafos como dos cineastas atuais. Toda uma nova legião de imagens sem nome está brotando desta convergência. Já é possível ver estas figuras intermidiáticas até mesmo nos sites de jornais tradicionais. Mas é nas mãos de uma nova geração de seres híbridos a quem tenho chamado fotoastas – que as tensões que originam a nova condição móvel da fotografia são mais visíveis.  Neste sentido, um trabalho do coletivo brasileiro Cia de Foto é exemplar.

Em Longa Exposição (2009), importa antes a pose que o retrato. Entre outras celebridades, o cineasta Hector Babenco espera ao vivo por um clique que nunca chega. No portrait animado do cineasta, a memória traumática das relações entre fotografia e cinema toma conta da cena.  Babenco, sisudo, destitui-se de toda performatividade e atravessa heroicamente os primeiros noventa segundos de sua “exposição” sem sequer piscar os olhos. Certamente era também dele que falava Baudelaire, ao comentar:

Desespero e esperança, indiferença ociosa.
Quanto mais a ampulheta eu via a se esvaziar,
Mais a tortura me era atroz e deliciosa;
Meu coração fugia ao mundo familiar.

Porém, antes que a cortina milenar venha dar um fim ao teatro da vida, ainda existem promessas por cumprir. As novas longas exposições da fotografia, móveis ou imóveis, buscam realizar uma destas: o de abrir-se o dispositivo fotográfico, completa e devotadamente, a um mundo mutiduracional. Promessa antiga reencontrada agora, rejuvenescida, vigorosa, pois esteve ali hibernando, por mais de um século, em um canto esmaecido da história da imagem técnica. É o elo perdido da fotografia, a velha promessa de Lumière, esquecida e obscurecida pelo cinema, e que agora retorna: o mesmo trem que chega, como se fosse pela primeira vez, a uma antiga estação.

* Dei um tempo na série dos duplos fotográficos que retornam no meu próximo post. Uma versão mais longa (e mais acadêmica) do texto de hoje, chamada “O Elo Perdido da Fotografia”, será publicada no primeiro número da Revista Eletrônica LAIKA, editada pelo Laboratório de Investigação e Crítica Audiovisual da ECA/USP.

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Historiador, roteirista, pesquisador, doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da ECO-UFRJ.

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