[texto curatorial]
O espaço de um acervo está dedicado à guarda. Dentro dele, encontramos um ambiente solene, silencioso, operado por fisionomias pensativas e gestos metódicos. Em sua parte mais protegida, ele pode soar um pouco hostil aos sentidos, pela clausura, pela baixa temperatura e pelos odores indecifráveis que emanam dos materiais. Toda essa reserva – termo que nomeia seu espaço mais técnico, mas também um pouco de sua personalidade – esconde sempre a expectativa de ser descoberto, adentrado, explorado. Guardar é se colocar em estado de prontidão, de vigília. Mas é também colocar-se em espera, em aguardo. Seu recato não é senão a postura de um corpo que, tendo conhecido perdas e traumas, e recusando-se à espetacularização, aprendeu a esperar e exigir olhares mais dedicados, capazes de retribuir sua disponibilidade. O acervo é rigoroso com relação ao que está dentro, justamente porque é desejante de algo que vem de fora: esse movimento ativo da visão que, como alguns idiomas latinos nos ensinam, é justamente um dos sentidos da palavra guardar (guardare, regarder).
Sua quietude também precisa ser decifrada: contrário do vazio e da mudez, esse silêncio é o resultado de uma discursividade que se acumula e se multiplica, isto é, do universo gigantesco de narrativas que, ali, encontram-se em estado de potência, e que também aguardam pela oportunidade de expressão.
Todo investimento arquivístico resulta de uma posse, de uma autoridade e de uma vontade ordenadora. Deriva, portanto, de uma estrutura de poder a que todo o conhecimento está sujeito. Mas, as imagens renegociam entre si os seus sentidos, e trazem consigo a possibilidade de perturbação das certezas que o organizam. O poder totalitário tende sempre a fechar seus arquivos, assim como sua abertura e sua exposição exigem uma disposição para a crítica, para a desestabilização, para um discreto e intenso gesto revolucionário.
A perspectiva histórica que o arquivo instaura convida a pensar a imagem fotográfica a partir de sua origem: o que era aquilo, quem eram aqueles que estavam diante da câmera? Quem a produziu? Que motivações e impulsos determinaram a escolha de um ponto de vista e de um instante? A que propósitos ela serviu? Mas, justamente quando a crítica e a incerteza se impõem, a história nos devolve suas próprias perguntas, não mais sobre as origens, mas, desta vez, sobreo destino das imagens. Nesse lugar que está dedicado à conservação, a memória segue se transformando e operando suas latências, e as imagens que entram não são necessariamente aquelas que os olhares reencontram. Consagrada ao tempo, as imagens exigem seu curso para se revelar.
Esta exposição mostra trabalhos que partiram de experiências com arquivos (e outros repositórios de imagens), ou que já nasceram como documentos destinados a habitá-los. Por meio de quatro recortes, explora o modo como a passagem do tempo tensiona certas palavras-chave da pesquisa histórica, confrontando-as com seu avesso: era preciso esperar para saber que o que os riscos de antes, quando ignorados, ressurgem mais adiante; que o sujeito, quando representado, desdobra-se sempre num personagem; que, mostrar em demasia, equivale a ofuscar o olhar; e que, em compensação, toda perda opera a possibilidade de uma transfiguração.
Em meio a esses câmbios, é inevitável notar que aquilo que chamamos de fotografia também se modifica. O acervo do MIS tem uma particularidade: ele não é apenas constituído de documentos, imagens e registros sonoros sobre um recorte temático qualquer; ele está também dedicado à memória das próprias linguagens audiovisuais. Aqui elas são instrumento de pesquisa e, ao mesmo tempo, objeto de conhecimento. E, nessa condição ambígua, elas se sobrepõem e se desdobram de muitas outras formas. Ao olhar para a história desse artefato que chamamos de fotografia, nos deparamos com uma experiência que se atualiza em outras materialidades. Encontramos fotografias que, de modos bastante distintos, ganham movimento. Outras que demandam não apenas o olhar, mas também uma escuta. Em contrapartida, descobrimos os tantos retratos e as paisagens construídas por depoimentos e registros sonoros. Há, por fim, as imagens que só se tornam visíveis quando fechamos os olhos e que nos fazem perceber que, também nós, nos tornamos acervo.
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Era preciso esperar para saber
MAIO FOTOGRAFIA | MIS-SP
21/04 a 17/06/2018
Av. Europa, 158, Jd. Europa – S. Paulo