Westworld: o bordel das narrativas

[16.dez.2016]

Westworld é uma série da HBO que aborda o velho tema da inteligência artificial por meio de uma combinação improvável, mas bem sucedida: ficção científica e western. A série joga com os chavões de cada gênero, mas traz também referências de seus melhores exemplares, como Blade Runner e Os Imperdoáveis. É baseado no filme homônimo, de 1973. Evitarei spoilers!

Westworld é um parque temático onde turistas fazem uma imersão muito realista pelo Velho Oeste norte-americano, interagindo com androides – chamados de anfitriões – que são programados para cumprir personagens próprios do imaginário que temos desse lugar: a donzela, o herói, o fazendeiro, o xerife, o caçador de recompensas, a cafetina, o assaltante e seu bando, os soldados mercenários etc. O ambiente é selvagem, como não poderia deixar de ser. Mas, nos duelos, emboscadas e tiroteios, os androides podem ser mortos à vontade. Já os turistas tem sua segurança garantida, eles são imunes às armas que circulam pelo parque. De modo geral, os turistas tem personalidade um tanto plana: são todos eles pessoas entediadas e arrogantes em busca de um pouco de diversão. Tendem a desaparecer como objetos cênicos secundários. Já os androides vão se tornando cada vez mais complexos e singulares, na mesma medida em que se interrogam sobre sua existência.

Entre os turistas, há duas exceções que seguem histórias paralelas: um que é particularmente perverso com as máquinas, outro que reconhece nelas a humanidade que falta às pessoas de sua vida real. Há também os cientistas e executivos que cuidam do parque, cujas ações têm sempre intenções obscuras. O mote central, se podemos resumir, são os limites éticos que deveriam reger esse entretenimento feito com máquinas humanizadas.

A série conta com muitos bons atores, dentre eles Antony Hopkins e Ed Harris. Tem também Rodrigo Santoro, que não se sai mal no papel secundário de assaltante sedutor. A trama traz muitas surpresas, mas também um tantinho de filosofia fácil (tipo “a busca do seu próprio eu”, “a verdade está dentro de você”). De modo geral, o roteiro é inteligente e será um bom entretenimento para aqueles que gostam de ficção científica e especulações sobre a tecnologia (bem recomendado para os órfãos do recente e aclamado Black Mirror). A construção de “roteiros” é, aliás, uma questão chave da série. A roteirização das aventuras oferecidas pelo parque e a liberdade de improvisação que é dada aos androides é a razão de todas as disputas da trama. Daí que Westworld consegue nomear de uma forma muito perspicaz o produto que ali é vendido e que responde a uma carência humana crucial: “narrativas”. Alguém nos bastidores parece ter esbarrado em Walter Benjamin discutindo a impossibilidade da experiência na modernidade e a consequente a perda da capacidade de narrar (“Experiência e Pobreza” e “O narrador”, ambos disponíveis no volume 1 de suas Obras Escolhidas). Foi Benjamin também que disse que o “era uma vez”, que situa a história num tempo determinado e homogêneo, é uma “prostituta instalada no bordel do historicismo” que acolhe “os vencedores um após o outro” (“Sobre o conceito de história”, disponível no mesmo livro). Ao buscar um sentido para a existência desses seres programados para serem sempre derrotados, a série tentará redimir a narrativa – e também a prostituta – desse papel questionado por Benjamin.

Não se produz memória em Westworld e o tempo dos acontecimentos é incerto. Por segurança, a memória dos androides é zerada de tempos em tempos. A dos turistas é igualmente volátil, desta vez, por uma espécie de inaptidão voluntariamente cultivada como forma de sobrevivência num mundo acelerado e repleto de estímulos. As pessoas chegam ao parque em busca de um prazer muito imediato, um alívio rápido que precisa ser sempre repetido. Não é por acaso que o bordel local constitui uma porta de entrada e ponto de vista privilegiado para as aventuras oferecidas.

Em seu recém lançado livro Picture Ahead, Livia Aquino demonstra o modo como a Kodak ajudou a inventar a figura do “turista-fotógrafo”, alguém cujos percursos de férias têm a fotografia como principal lugar de chegada. Westword é o limite dessa indistinção entre viagem e imagem. Só que quando a “boa cena” não está apenas em algum lugar adiante, quando todo o território já foi fabricado como imagem, a câmera se torna dispensável. A memória dá lugar à virtualidade leve dos games: não é necessário lembrar, basta jogar de novo. Há um fotógrafo em Westworld que quase não vemos, apenas o percebemos pela explosão de seu flash de magnésio. Ali, a câmera não é mais que um objeto cênico de época. Haverá sim uma fotografia importante na trama: uma imagem perdida por um turista que merecerá de um androide um olhar perplexo, desses que os humanos parecem ter perdido. É justamente essa foto que acabará por expor um bug na programação das máquinas.

A palavra narrativa é repetida muitas vezes. É dentro das narrativas do parque que se formam as relações entre turistas e androides, é em torno de sua criação que surgem os conflitos entre cientistas e executivos responsáveis pelo entretenimento. Como é próprio das discussões em torno dos simulacros, logo descobriremos que aqueles que parecem controlar as narrativas já foram tragados por ela, já se tornaram seus personagens.

Fato é que os turistas, a quem todo o teatro está dedicado, não são mais capazes de dar sentido às histórias que supostamente buscam: eles se contentam com figurino que vestem, a cenografia bem caracterizada, um pouco de sexo e tiroteio. Serão os androides – eles que são programados para repetir os mesmos gestos e falas todos os dias – que irão garantir uma narrativa efetiva, quando se desviam de seus roteiros e se lançam numa saga em busca de suas memórias.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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