Wim Wenders tem uma relação intensa com a fotografia: ele produziu um corpo de trabalhos importante, usa fotos como ferramenta de pesquisa na produção de seus filmes, incorpora com frequência imagens e personagens fotógrafos às suas histórias e, vez ou outra, aventura-se a teorizar sobre essa linguagem. As trasnformações tecnológicas da fotografia são para ele um tema sensível.
Houve um tempo em que Wenders depositava boa dose de confiança na capacidade dessa imagem de produzir uma relação intensa entre o olhar e o mundo. É pela fotografia que Phil, o jornalista em crise de Alice nas cidades (1974), reencontra-se com a realidade e com a possibilidade de narrar uma história. Nesse momento, o fetiche e a instantaneidade da recém lançada Polaroid SX-70, que o personagem utiliza, ainda não perturbavam a densidade que Wenders conferia à fotografia.
Num belo texto de 2001 (publicado na Revista ZUM, n. 4, 2013), ele nos fala de um duplo movimento que a câmera realiza, como uma arma que dispara um projétil para frente e dá um coice para trás:
a câmera, portanto, é um olho capaz de olhar para frente e para trás ao mesmo tempo. Para a frente, ela de fato “tira uma foto”, para trás, registra uma vaga sombra, uma espécie de raio X da mente do fotógrafo, ao olhar direto através do olho dele (ou dela) para o fundo de sua alma.
Esse duplo movimento que conjuga “as coisas” que estão diante da câmera e o “desejo” que move aquele que está atrás dela, é o que confere singularidade a cada imagem. Nesse momento, ainda com otimismo, Wenders sugere que uma aura é capaz de sobreviver à banalização do gesto fotográfico:
até mesmo os zilhões de instantâneos de turistas naquelas “ocasiões para fotos” especialmente indicadas são, cada um deles, um evento que só ocorre uma vez. Mesmo em seus momentos mais triviais e corriqueiros, o tempo permanece irreversível.
Mas alguma coisa se perde no caminho. Em outro filme, Palermo Shooting (2008 – disponível no Netflix), ele conta a história de Finn, um fotógrafo bem sucedido, em crise com a superficialidade de seu trabalho e de sua vida. Como o personagem de Alice nas Cidades, ele sai em busca de novas paisagens mas, neste caso, a fotografia parece falhar na tarefa de reconectá-lo ao mundo. A performance do corpo em relação à tecnologia é algo que Wenders coloca em evidência, para o gozo daqueles que, se pudessem, lançariam ao fotógrafo a tradicional primeira pergunta: “que câmera você usou?”.
Finn se alterna entre alguns equipamentos muito charmosos: dentre eles, uma poderosa Hasselblad digital de 50 megapixels; uma Seitz Roundshot 28/220A, panorâmica digital do tipo spin, que registra a paisagem em 360 graus; uma Makina 67, analógica de médio formato, que arma seu fole num gesto discreto (tão elegante quanto a abertura da SX-70, de Alice nas cidades). A primeira, a Hassel, é poderosa mas também ágil o bastante para garantir a performance frenética que uma superprodução exige: um editorial de moda em que Milla Jovovich interpreta a si mesma. A segunda, a panorâmica, parece trabalhar sozinha, reponde à exigência de mostrar tudo ao mesmo tempo e sequer exige olhar aquilo que se fotografa. A terceira, a analógica, tem uma relação bastante orgânica com o corpo e surge no momento em que Finn sente necessidade de um ritmo mais sereno.
É essa mesma câmera analógica que desencadeia um diálogo com a fotógrafa italiana Letizia Battaglia, que faz uma aparição incidental no filme, a quem Finn confessa: “estou perdido!”
Buscando em Palermo a possibilidade de um olhar mais contemplativo, Finn não encontra a paz que deseja. Ele é perseguido por um personagem misterioso que, depois, descobrirá ser a Morte. Finn é claramente inspirado no fotógrafo de Blow-up (1966), só que, desta vez, a sucessão de ampliações que permite descobrir o rosto da morte acontece no Photoshop, não no laboratório. A personificação da Morte, por sua vez, remete a outro clássico, O sétimo selo (1957). Essas referências são assumidas nos créditos, na dedicatória feita a Antonioni e Bergman, falecidos no mesmo dia, em 2007.
Quando Finn se encontra cara a cara com a entidade que veio buscá-lo, ele resiste a seu destino. A Morte se mostra paciente e, como em Bergman, disposta ao jogo. Ela lhe convence de que a vida só tem importância graças a ela. Acha os fotógrafos arrogantes, mas gosta da fotografia, identifica-se profundamente com essa imagem que está intimamente ligada à morte, sobretudo com o negativo (“o lado oposto da vida, o lado oposto da luz”). E protesta contra a fotografia digital. Parece não suportar o fato de ter sido flagrado por uma tecnologia tão fútil. Acaba por lhe dar uma chance, não sem pedir que o fotógrafo lhe tome uma foto, desta vez com a Makina 67, analógica.
É um belo diálogo, mas resulta um pouco didático ao querer destilar o desconforto de Wenders com a fotografia da atualidade. Também soa exagerado – um dispêndio metafísico – convocar entidades sagradas, Antonioni, Bergman, a Morte, para debater o estatuto da fotografia digital. Wenders leva esse assunto muito a sério.
Uma ponta de esperança ressurge em Wenders quando o vemos, no mais puro preto e branco, testando a nova série M da Leica (2008), que o faz lembrar da câmera que seu pai usava quando ele era criança:
Segurando hoje a nova Digital M, nada parece diferente. O mesmo foco preciso, a mesma medição intuitiva de luz, e o maravilhoso clique suave do obturador. E exatamente a mesma relação entre o que você viu lá fora e a imagem interna que precede cada fotografia. Ainda que na revolução digital em curso, muito se tenha perdido daquilo que eu aprendi a amar quando criança, e que fez a fotografia entrar no meu fluxo sanguíneo, Leica consegiu preservar e traduzir na era digital tudo com que alguém poderia apenas sonhar.
Não cabe ser moralista quanto ao caráter publicitário desse depoimento. A credibilidade do cineasta permite supor que um cachê não seria suficiente para fazê-lo dizer algo em que não acredita. Se Wenders dá importância aos rituais que giram em torno da técnica, para muitos a Leica é mesmo essa espécie de “objeto sagrado” capaz de colocar o futuro em consonância com nossa nostalgia. A esperança de Wenders parece autêntica, mas dura pouco.
Numa entrevista concedida pouco tempo depois (2009), ele retoma o personagem de Palermo Shooting para constatar que o sujeito – aquele que, antes, era invariavelmente tocado pelo coice da câmera – retira-se da fotografia: Finn “acelera a si mesmo para fora de sua própria presença e perde contato com ela”. Como Finn, “os fotógrafos de hoje não precisam estar tão presentes como costumavam estar, porque eles já estão de certo modo pensando na pós-produção e no photoshop”. Wenders bem que tentou:
Ao longo do tempo, eu tive algumas experiências com o digital, mesmo na fotografia. Mas, por fim, mandei embora todas essas câmeras digitais (…). Eu simplesmente não sabia o que fazer com essas coisas que fazem o tempo desaparecer (…)
Ele segue falando da importância de “cultivar o momento, gozá-lo, (…) esperar meia hora até que a luz mude.
Por fim, em O Sal da Terra (2014), Wenders parece superar o problema da tecnologia [leia post sobre esse filme]. Salgado, como todos os profissionais de sua geração, teve que viver a transição do analógico para o digital. Mas não foi preciso trazer essa questão para o filme. Salgado seria, para jogar com a analogia de Wenders, alguém definitivamente marcado pelos “coices da fotografia”, de modo que a mais ligeira e fácil das tecnologias já não é capaz de dissolver sua presença sólida diante das coisas. Salgado soube permanecer clássico, contemplativo, humanista… O Sal da Terra é um filme otimista, trata da esperança de um fotógrafo que, em meio a tantas desgraças, reencontra um planeta dedicado à vida.
Pontuar fragmentos de conversas e obras distintas não é um método muito seguro para saber o que um autor pensa de certo tema. É preciso considerar o risco da descontextualização: a opinião de Wenders em cada momento pode se referir a aspectos muito distintos do que cada tecnologia oferece. Por exemplo, Palermo Shotting, filmado em película, foi finalizado em cópia digital para que uma série de efeitos pudessem ser acrescentados. Nesse momento, ele explica: “o cinema digital enriquece a paleta do artista, suas possibilidades criativas, permite criar melhor o sonho do cinema” (UOL Entretenimento, 2008).
A oscilação do pensamento é um direito que temos: todos nós – fotógrafos ou pensadores da fotografia – já lamentamos em algum momento os efeitos da cultura digital, tanto quanto nos beneficiamos das facilidades que ela oferece. Para o pensamento crítico, experimentar as coisas do modo que elas são propostas em cada momento é tão fundamental quanto manter ativa uma dose de desconfiança. Temos aprendido que “contra” ou “a favor” são figuras incapazes de representar os fenômenos mais complexos.
A nostalgia é sempre um pouco dramática, por vezes ranzinza. Mas descobrimos com Wenders que ela pode ser um tanto perseverante e generosa. É por meio dela que se pode seguir buscando no que existe as possibilidades de ressurreição daquilo que se imagina perdido. A fotografia vista por Wenders é como o planeta visto por Salgado, é como o personagem de Palermo Shooting encarado pela Morte: diante do fim, sempre se deve apostar numa última chance.
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