Aprendemos a ter posições firmes a respeito de violências ofuscadas pela má distribuição dos direitos. Detectamos rapidamente o preconceito e o abuso em suas variações mais sutis. E a sensibilidade que cultivamos, a mesma que nos faz gostar de arte, respeitar diversidades, cuidar do planeta, também nos cobra uma posição firme contra o opressor. Mas, mesmo que o fascismo se prolifere como epidemia, mesmo que nos afete todos os dias, do ponto de vista íntimo, do ponto de vista da gestão de nossas emoções, a coisa é simples: temos lugar e vocabulário bem definidos para cada ser escroto que encontramos pelo caminho. Variamos entre uma gama precisa de sentimentos, que vai do desprezo ao ódio, conforme a gravidade, a distância e a necessidade de sair a campo para lutar.
Vez ou outra, essa certeza é testada pelo afeto, mas nem velhos amigos, primos, irmãos ou pais são poupados quando dizem asneiras ou se omitem em questões cruciais. Mas temos sim um ponto fraco. Neste ponto, é prudente falar apenas por mim. Tenho sim um ponto fraco: quando essa mesma sensibilidade exige sacrificar algo que ajudou a cultivá-la, quando o autor de uma obra que admiramos ao longo da vida comete uma atrocidade… Aí, a gestão dos afetos deixa de ser simples, porque se trata justamente de alguém que nos ensinou que sentimentos podem ser muito complexos.
Quantas vezes nos perguntamos: apesar de toda divergência ideológica, como a direita pode ignorar a genialidade de Chico Buarque? Pode-se discordar do que ele pensa, mas será que eles não são capazes de escutar a beleza e a inteligência de sua música? Supomos que, sendo o que são, pensando como pensam, falte-lhes exatamente essa sensibilidade estética que nos é tão cara. Só que, mais cedo ou mais tarde, chega nossa vez de odiar nossos gênios. Por exemplo: agora mesmo, e de novo, Woody Allen. A acusação é mais grave que aquela dirigida a Chico, não se trata apenas de uma divergência radical de opiniões. Mas o ódio, o meu ou o do outro, é um sentimento que se infla de gravidade e se tona absoluto. Então, a perplexidade que se instaura não é essencialmente diferente daquela que nos impede de entender como é possível descartar as belas contribuições de Chico Buarque. Só que essa dúvida, quando se volta para nós mesmos, não aparece como pergunta bem formulada, mas como indigestão, como nó na garganta.
A qualidade de uma obra não absolve ou torna menos relevantes as más condutas de seu autor. Supor isso seria criar um equivalente estético do “rouba (ou estupra, ou mata…) mas faz”. Mesmo assim, não creio que caiba opinar sobre o lugar em que cada um irá colocar a obra de um artista ou intelectual que cometeu uma atrocidade. Quem está em condições de regular o modo como funciona a sensibilidade alheia? É legítimo que o olhar se afaste quando a antipatia – ou a empatia com a vítima – se impõe como único filtro possível. Mas localizar numa relação desse tipo as forças ambíguas que nos atraem e nos repelem pode ser um gesto igualmente crítico, auto-analítico inclusive, mais produtivo do que a mera adesão ao sentimento médio da bolha a que se pertence. Essa hesitação é legitima, e é o ônus dessa sensibilidade que cultivamos.
Enfim, fui ver o último o Woody Allen. Inevitável que essa metonímia cobre agora seu preço e imponha tomar “o autor pela obra”. O filme está bem longe de seus melhores trabalhos e, ainda assim, é muito bom. Antes e depois do filme, e algumas vezes durante, é inevitável perguntar qual é a relação do Woody Allen que vejo nas telas com aquele que leio no depoimento de sua filha. Diante de suas obras primas, a angústia só aumenta: a cena inicial de Annie Hall (1977) tem a força de um tratado sobre a dubiedade humana e, por isso mesmo, soa agora como um comentário irônico e perverso sobre as hipóteses que viríamos a conhecer. Não saberia descrever melhor esse desconforto, nem tirar mais consequências do problema do que fez a escritora Claire Dederer, num longo artigo publicado no El País que me chegou por várias fontes, mas que li por insistência de Pio Figueiroa. Também não posso falar como ela do ponto de vista do artista que, às vezes, se admite monstro. Não porque nunca tenha sido monstro, mas porque não sou artista.
Woody Allen está cada vez mais longe daquela pessoa que tantas vezes eu desejei ser quando crescer. Mas a expressão de minha decepção esbarra nos limites de alguns valores. Não atiraria ovos numa palestra dele mas, se eu pudesse ter a palavra, me esforçaria para fazer a pergunta mais contundente que conseguisse elaborar. Não picharia o muro da casa dele, nem o xingaria num restaurante ou num avião, mas ficaria feliz se ele fosse julgado por quem compete (isso vale para Woody Allen, Bolsonaro, os Nardoni ou Jack, o Estripador). Não trabalharia com ele, não o quereria como amigo e nem como professor, mas estudaria sua obra, talvez agora mais do que antes, e me debateria um tanto com as palavras para encontrar o tom e o modo de falar sobre ele.
Mesmo sem a mesma capacidade de análise, me identifico com o impulso de Dederer: a perplexidade, a decepção e o repudio, em contraste com a admiração que cultivamos a vida toda, tornam-se combustível para querer rever e pensar o trabalho do cineasta. Enquanto tento calcular o vetor que resulta desses sentimentos ambíguos, a lista de autores que tem obras admiráveis e biografias repugnantes começa a ficar infinita. É preciso o tempo de enfrentá-los caso a caso. Antes e independentemente desses julgamentos, compartilho algumas constatações que atravessam o problema.
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- Desde a obra fundadora de Vasari (Le vite de più eccellenti pittori, scultori e architettori, de 1550), a história da arte tem sido feita, em boa medida, de biografias elogiosas. Pressupõe-se que o gênio artístico derive de um gênio moral, sendo aceitáveis pela posteridade apenas desvios justificados como inaptidão para as convenções sociais, subversão política ou como “moral à frente de seu tempo”. Parte da decepção que sentimos cada vez que nos deparamos com o caráter falível do artista é proporcional à idealização histórica dessa figura.
- As obras nunca estiveram imunes ao julgamento que recai sobre a pessoa do artista, mas esse julgamento é feito com a moral vigente em cada época, em cada lugar ou em cada bolha. Artistas – e suas obras – foram execrados por serem pervertidos, o que poderia, a depender do contexto, significar que eram anarquistas, homossexuais, viciados em drogas, frequentadores de bordéis ou estupradores. Vivemos hoje o drama de lutar contra os comportamentos intolerântes e contra os comportamentos intoleráveis, mesmo sabendo que, muitas vezes, a definição do segundo seja motivada pelo primeiro (como alguém cool que propõe o linchamento dos defensores da pena de morte, que bem poderia ser um personagem de Woody Allen).
- A noção de indivíduo, que pressupõe um sujeito com contornos bem definidos, é uma construção histórica. Invariavelmente, revelamo-nos múltiplos, cindidos, com um abismo enorme entre as várias coisas que somos ao mesmo tempo. Somos bons e maus, ignorantes e inteligentes, virtuosos e corruptos. Dessa cisão não escapa nem o artista, nem o espectador. E não escapa a relação entre eles, porque é muitas vezes pelo olhar – pelo mecanismo que Freud chamou de pulsão escópica – que a repulsa se revela uma das faces do desejo que almeja sepultar.
- Uma obra inventa seu criador, tanto quanto o contrário. As leis fazem coincidir essa pessoa e um sujeito civil para, de um lado, situar responsabilidades pelo que é dito e, de outro, estabelecer as condições que fazem da obra uma propriedade (Foucault, O que é um autor). Como uma sombra que se rebela do corpo, mas que não existe sem ele, há um ser que se produz entre as obras, que é por si mesmo instável, e que nem sempre está no mesmo lugar desse beneficiário dos direitos e das responsabilidades autorais.
- É arriscado querer entender por uma obra, ou mesmo pelo conjunto das obras, as razões ou desrazões que movem o artista nas coisas boas ou más que faz em sua vida. Porque buscar rápido demais na representação sua porção de realidade implica em equívocos semelhantes àqueles que permitem enxergar pedofilia numa pintura ou no corpo nu de uma performance. É mais provável que a obra se ligue à realidade como sintoma, o que significa também que ela não será simplesmente sua imitação, seu equivalente ou sua explicação, mas mais também seu subterfúgio, sua denegação, seu modo de despistá-la, como a criança que, num jogo de cobra-cega, diz “eu tô aqui”, desejando ser perseguida mas nunca encontrada. Por isso, não é suficiente colocar a obra no divã em lugar do autor, ou buscar nela o erro que queremos punir.
- A autonomia do objeto artístico que funda a nossa noção de estética parece incompatível com as expectativas e responsabilidades que depositamos hoje sobre esse fazer. O objeto não se basta: os engajamentos de que parte e que gera são reivindicados como elementos que pesam sobre seu julgamento. A atenção aos “processos” faz a fruição transbordar para fora dos limites desse objeto. Inevitável que o pensamento e o comportamento do artista seja um desses lados de fora trazidos para dentro da fruição. O problema é que o artista, por sua vez, também é processo e nunca está totalmente dentro dos contornos do sujeito que visamos quando estamos diante de uma obra ou de uma notícia sobre ele.
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