Deslumbrado com as promessas trazidas pela ideia de progresso, o ilustrador francês Albert Robida tentou imaginar, no final do século XIX, as conquistas que viriam com o século que se iniciava. Numa sequência de três livros – O século XX (1883), A guerra no século XX (1887), O século XX: a vida elétrica (1890) – Robida intuiu bem certas necessidades que já se esboçavam em seu tempo, mas parece ter errado feio nas respostas que seriam dada a cada uma delas. Seu limite é claro: ele só pode imaginar o futuro a partir de um repertório que estava disponível em seu tempo.
O inverso também acontece: imaginamos o passado a partir do repertório do presente. Por exemplo, quando dizemos que “Caravaggio (séc. XVII) é bastante fotográfico”. Do ponto de vista histórico, trata-se desse pecado que os historiadores chamam de anacronismo. Do ponto de vista antropológico, esses equívocos na interpretação das formas são muito representativos do lugar a partir de onde se olha para a história.
Em 2014, fui convidado a participar de uma mesa que homenagearia a Shiyodi Imoto, fotógrafo de São José dos Campos que ainda mantém uma banca de serviços fotográficos no Mercado Municipal da cidade. Imoto teve um papel importante na criação da “comissão de fotografia” da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, onde trabalhei nos anos 90. Nessa celebração, Imoto projetou para o público imagens antigas de seu acervo que registravam alguns eventos importantes e a transformação da paisagem da cidade. Quando a conversa se abriu à plateia, um adolescente cuja família conhecia o fotógrafo desde muito tempo, fez uma das primeiras perguntas: “como já era possível, naquele tempo, criar esse efeito que deixava as fotografias preto e branco?” Muitos ali não entenderam a questão. Não é fácil entender que o rapaz cresceu num mundo em que as fotografias são – desde sempre! – coloridas, e que o efeito P&B é resultado de filtros como os do Instagram.
Ali mesmo, lembrei de uma historia contada por um amigo fotógrafo, que achei útil compartilhar com a plateia: seu filho pequeno perguntou à irmã um pouco mais velha “o que era uma carta”. A menina respondeu com toda convicção: “é um e-mail que a gente põe dentro de um envelope”. Essa explicação só é engraçada para a minha geração porque, com o passar do tempo, ela se tornará cada vez mais precisa e natural.
Por mais ingênuo que tenha sido o estranhamento que levou o garoto a pensar o P&B da fotografia como um “efeito”, ele pressupõe uma desconfiança que muitos teóricos eruditos acabaram por reivindicar: muita coisa que consideramos “natural” na imagem são “construções” impostas pela técnica. O P&B, a perspectiva, a profundidade de campo são coisas que não existem na natureza, e não deixam de ser resultado de uma espécie de “tratamento” imposto pela técnica.
Operada de forma mais consciente, o ato de percorrer a história no sentido inverso permite a muitos autores situar conceitos “avant la letre” (isto é, localizar um fato que pode ter existido “antes da palavra” que a nomeia). Por exemplo, vários autores, dentre eles Arlindo Machado (Máquina e Imaginário), viram na literatura de Mallarmé (sobretudo no poema Un coup de dés, e na obra inacabada Le Livre) uma obra hipermedia avant la letre.
Marco Polo, grande contador de histórias, escreveu em seus relatos sobre a riqueza do oriente: “eles têm muitos elefantes e também unicórnios selvagens, que não são menores do que os elefantes; eles têm a pele como a do bufalo e patas como as do elefante, com um chifre grande e preto no meio da testa (…) Sua cabeça é semelhante ao do javali (…) Eles são animais desagradáveis e de aparência horrível”. Depois, descobrimos que os tais unicórnios eram, na verdade, rinocerontes, aniamais que Marco Polo via pela primeira vez. Tanto Enst Gomrbich (Arte e Ilusão) quanto Umberto Eco (Kant e o Ornitorrinco) observaram, a partir desse relato, que só somos capazes de descrever o desconhecido a partir de formas que nos são familiares. Isso vale para as coisas de lugares distantes, assim como para coisas de tempos distantes.