Não sou apreciador da pichação. Simplesmente não gosto, como também não gosto de boa parte dos edifícios e viadutos que compõem a paisagem de São Paulo. Mas pichação, prédios e viadutos são fenômenos inerentes ao crescimento urbano. Gostando ou não, o melhor que posso fazer é usufruir deles: optei por morar num prédio porque acho mais seguro, passo por viadutos quase todos os dias e me esforço para entender o sentido da pichação. Tento não cair em algumas falácias de quem não gosta: tem que proibir prédios, tem que derrubar viadutos, tem que prender pichadores. A opção de viver numa cidade como São Paulo exige tolerância. Este texto é parte desse exercício.
Temos ouvido duas perguntas sobre a pichação: a pichação deve ser legalizada? Pichação é arte? Há perguntas que, trazendo o debate para um campo estranho ao fenômeno em questão, já se tornam uma forma de controle e anulação. Por exemplo, quando os jesuítas se perguntavam se o índio poderia ser educado como um bom cristão, o debate já estava perdido: ou o índio demonstra sua capacidade de assumir uma identidade que não é a sua ou justifica seu extermínio.
Sobre a legalidade da pichação
Há um debate sobre a descriminalização da maconha, sobre autorização do nudismo, sobre a regulamentação da prostituição como profissão. Essas são reivindicações que estão colocadas pelos sujeitos implicados ou engajados nesses universos. Não podemos discutir a legalidade da pichação como se essa fosse uma reivindicação dos pichadores.
A pichação é uma manifestação invasiva, transgressora, arriscada, é uma apropriação que desafia as regras assumidas pela cidade. Por sua própria natureza, está fora do campo das legalidades instituídas. É subversiva? Esse é um termo que havia se tornado anacrônico, mas que, nestes tempos moralizantes, volta a fazer sentido. Esse é o problema da política de endurecimento: se é verdade que uma parte dos pichadores não sabem exatamente pelo que lutam, por si só, essa política já lhes confere uma causa.
A ilegalidade da pichação não está em discussão e não precisa estar. É o rigor da punição que deve ser debatido. Andar com o braço para fora da janela do carro, fumar dentro do campus, buzinar na porta do hospital, xerocar um livro também são coisas proibidas. Dependendo do contexto e da interpretação, falar palavrão e mostrar o umbigo também pode ser. O fato de ninguém ser processado ou preso por isso, não significa defender a legalização desses atos. Significa, de um lado, adotar certo nível de tolerância a movimentos que estão dados dentro da cultura e que não causam danos irreparáveis. De outro, significa que há coisas mais importantes com que se ocupar.
E quando se pode demonstrar que o prejuízo contabilizado já é grande? E quando há indícios de que, vez ou outra, a pequena ilegalidade vem acompanhada de violências maiores? Essas hipóteses que justificam o endurecimento contra os pichadores são as mesmas que, em diversos países, têm motivado o fechamento das fronteiras e a expulsão de imigrantes: “os imigrantes tiram empregos dos cidadãos”, “a tolerância à imigração facilita o terrorismo”. Construir muros e expulsar refugiados sem se perguntar a razão desses deslocamentos é aumentar a temperatura dessa panela de pressão que se tornou o mundo. Declarar guerra aos pichadores e aos imigrantes são fenômenos muito distintos. O que importa aqui é perceber que esse gozo legalista pode justificar todo o tipo de perseguição.
Desejar erradicar a pichação em nome da propriedade privada e do patrimônio público exigiria, antes, considerar o modo como essa manifestação é, ela própria, uma resposta mais ou menos espontânea à privação da paisagem e à patrimonialização dos bens públicos. Um monumento é importante pela memória que agencia e não apenas pelo investimento que foi feito. Por isso, tão importante quanto protegê-lo é garantir que essa memória permaneça legível e faça sentido para as pessoas. Caso contrário, é natural que o Duque de Caxias se torne banheiro público, como insinuou a crônica que levou Lourenço Diaféria à prisão, nos tempos da ditadura.
Sobre a pichação como arte
“O pixo não é Arte. A Arte é sublime, pertence ao Olimpo social cuja população periférica não possui ticket de entrada. O pixo é uma contra-arte, contra-estética, contra-cosmética social, não é feito para ser agradável”, escreveu recentemente a pesquisadora Andy Jankowski.
A pichação pode estar permeada de valores estéticos, mas não é arte no sentido estrito do termo. Só pode ser arte dentro de uma perspectiva alargada desse conceito que permite chamar de arte um jarro usado para transportar óleo, a imagem de um santo numa igreja, os movimentos de um atleta, a fala de um professor.
O grafite foi assimilado como arte a partir do esforço de alguns grafiteiros, assim como das instituições de arte, aproveitando-se de uma identificação que essa produção mantém com a tradição da pintura. Isso deu ao grafite uma especificidade com relação ao “pixo” que não existe claramente em outros países do mundo. Mesmo assim, o grafite pôde ser assimilado pelo museu, assim como embalagens de produtos ou cartazes políticos também puderam aparecer em suas paredes. Também pode existir grafite feito especialmente para a galeria, do mesmo modo que um artista pode produzir esculturas que tem forma de jarros. Mas grafites, embalagens e jarros devem continuar cumprindo seus papéis no mundo antes e além de serem tratados como arte. Caso contrário, serão reduzidos a algum gênero e a uma tradição da arte pouco comprometida com a razão de sua existência no mundo.
Menos do que desmerecer o grafite ou a pichação, isso significa apenas reconhecer os limites da arte. É curioso que produtores de coisas várias reivindicam sua entrada nos museus, na mesma medida em que muitos artistas passam a considerar as paredes dos espaços expositivos insuficientes para os sentidos que suas ações almejam. Os espaços e as linguagens da arte não resolvem todos os problemas do mundo, nem mesmo os problemas de ordem estética.
Quando um museu ou galeria acolhe o grafite ou a pichação, ela pode estar respondendo à pergunta – sobre ser ou não ser arte – com o poder de sua benção ou, ao contrário, pode estar repensando sua vocação, abrindo suas narrativas a outras disciplinas além da história da arte, tornando-se mais permeável ao mundo exterior, despindo-se de sua autoridade, desmontando a solenidade de seus espaços e de sua abordagem. Mesmo assim, esse diálogo responde mais aos problemas do museu do que aos dos pichadores.
Vários autores – Regis Debray, Hans Belting, Didi-Huberman e Arthur Danto – sugerem que a História da Arte acaba por distorcer o sentido de uma parte significativa dos objetos que foram parar dentro de suas narrativas e também dentro dos museus de arte. E essa disciplina, assim como essa instituição, segue sem dar conta de boa parte das imagens produzidas na contemporaneidade. Para Belting, a história da arte não é mais que um capítulo de uma história mais ampla das imagens, que diz respeito a um objeto de estudo que passou a existir em algum momento da era moderna e que já começa a perder de novo seu contorno. A pichação é uma das formas de expressão que pertence à cultura das imagens, deve merecer uma abordagem antropológica como fenômeno da cultura contemporânea. Ela não precisa ser um subcapítulo desse capítulo que é a história da arte. A palavra “cultura” não se refere aqui às práticas eruditas, mas à teia de sentidos que uma sociedade projeta nas coisas. Dizer que que pichação é cultura não é reivindicar para ela um lugar entre as coisas solenes da vida: jogos de azar, briga de moleques na rua, soltar balão nas festas juninas podem fazer parte de uma cultura, o que não significa que esses hábitos devam ser cultuados como arte.
Alguns ignoram a pichação, ou veem nela rabiscos aleatórios e sem sentido, ou simplesmente a odeiam porque a consideram uma forma de vandalismo. Não é por isso que ela não será arte. Outros dedicam a ela certa atenção, gostam, encontram nela gestos habilidosos e expressivos, e estudam seus códigos. Não é por isso que deveria ser arte. Nesse debate, a arte se torna uma selo de qualidade fornecido por um terceiro a partir de critérios um tanto distantes da experiência que está em questão (tipo o InMetro certificando um escorregador sem precisar saber que é o frio na barriga que faz dele um sucesso entre as crianças).
Como disse, não sou nem estudioso, nem apreciador das pichações. Posso até mesmo supor que preferiria uma cidade sem elas, do mesmo modo ingênuo que preferiria um corpo sem dores e sem cicatrizes. Quando surge uma erupção na pele, é preciso olhar para o corpo, muitas vezes para o corpo todo, para o lado de dentro, para saber de onde vieram. Se elas persistirem e se tornam cicatrizes, será melhor pensá-las como parte de nossa história e de nossa identidade. Uma cicatriz bem resolvida vem sempre acompanhada do relato de uma experiência que se teve. Não de maquiagem.
Pichação é sintoma. Só uma parte dela pode ser decodificada ou institucionalizada, porque ela não se resume sequer àquilo que o pichador “quer dizer”. Ela é expressão de movimentos internos da própria cidade e não pertence apenas aos sujeitos com os quais se possa negociar ou a quem se queira punir. O sintoma nunca é em si o problema, é a forma possível de gerir e comunicar uma tensão ignorada pelas regras de um organismo, ou causada justamente por elas. A questão é: para onde vai um sintoma quando é simplesmente recalcado? Normalmente, ele retorna mais doloroso, por vias menos compreensíveis.
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