A fotografia e a Semana de 22 – Parte I

[26.fev.2012]

Na celebração dos noventa anos da Semana de Arte Moderna, há várias homenagens e publicações que tentam dar conta da extensão e da importância que o evento teve nas artes em geral. Mas poucos discutem as lacunas e as ausências cada vez mais evidentes à medida que nos distanciamos no tempo.

No dia 15 fevereiro de 1922, duas semanas antes do Carnaval, teve início a Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo. Em tese, este acontecimento cultural com preocupações nacionalistas poderia ter ampliado sua ressonância caso se aproveitasse das festas do Momo para alavancar ainda mais o impacto dessa revolução cultural que marcou a primeira metade do século XX. Mas, estranhamente, não houve conexão entre a Semana e o Carnaval, o que demonstra falta de planejamento e ausência de um projeto cultural mais consistente.

Na verdade, sabemos, a Semana nasceu conservadora. Patrocinada por Paulo Prado, integrante da aristocracia paulistana, que deu carta branca aos realizadores, mas estes preferiram destacar no evento a Pintura, a Arquitetura, a Música, a Escultura, a Literatura, esquecendo-se de que as vanguardas europeias (já assimiladas pela nossa burguesia) também integraram em suas manifestações a fotografia e o cinema, duas novas linguagens advindas de técnicas recém instauradas no cotidiano das pessoas, mas nem sempre admitidas como expressões da arte. Curiosamente, nossa vanguarda, que esteve próxima do Futurismo Italiano, não admitiu a produção gerada pelas imagens técnicas que traziam novas conceituações e novos questionamentos sobre a natureza do olhar.

Não há dúvida que o desenvolvimento tecnológico – fotografia, cinema, revistas ilustradas, automóvel, avião, gramofone, rádio, telefone e indústria em geral – vai influenciar os artistas participantes do movimento, bem como suas obras. O período estético efervescente resultante dessa relação é qualitativamente decisivo, mas a revolução foi conservadora se considerarmos a inexistência de experiências com a fotografia e o cinema. De certo modo, deixa a Semana num segundo plano em relação às manifestações das chamadas vanguardas históricas.

Augusto de Campos afirma que tivemos “um modernismo mitigado, tolerante, não isento de compromissos com a linguagem convencional e com os valores da tradição. ‘Sabe o que é para nós ser futurista? É ser kláxico’, ironizava Oswald de Andrade”. A revista Klaxon, porta voz do movimento a partir de maio de 1922, arrojada gráfica e esteticamente, já produzia um conceito de modo antropofágico. Na verdade, alguns dos modernistas só radicalizaram suas experiências estéticas depois da Semana. O próprio Mario de Andrade se torna fotógrafo e mais tarde crítico de cinema e, eventualmente, de fotografia, publicando no Suplemento de Rotogravura do jornal O Estado de S. Paulo (mas isso será assunto do próximo post).

Diante dessa constatação nos perguntamos se não havia manifestações no mundo das imagens técnicas que poderiam ter merecido algum destaque enquanto linguagem e representação por ocasião da Semana. Claro que sim, mas por motivo até então desconhecido, naquele momento os modernistas não tiveram sensibilidade (ou seria coragem?) suficiente para entender a importância da fotografia e do cinema como manifestações culturais. Isso tudo apesar de conhecermos alguns poemas fotográficos e cinematográficos.

Gilberto Rossi, Anúncio do Estúdio (fotomontagem), detalhe, c. 1915

Nessa primeira incursão no assunto aqui no Icônica, queremos destacar algumas imagens e autores que estavam em plena sintonia com as vanguardas. Um deles é o italiano Gilberto Rossi (1882-1971), elogiado na época por Oswald de Andrade e recentemente homenageado pela Cinemateca Brasileira, por ocasião da V Jornada Brasileira de Cinema Silencioso. Rossi aprendeu fotografia na Itália, teve estúdio próprio até 1911 quando resolveu vir para São Paulo montar um novo negócio. Inicialmente, estabeleceu-se como cinegrafista, mas como essa atividade era ainda muito nova, voltou-se para a fotografia, atuando em São Paulo, Jundiaí e no estado de Mato Grosso.

Suas fotomontagens possuem uma narrativa própria, centradas no autorretrato, e um humor característico daqueles artistas que entendiam a fotografia como possibilidade expressiva e manifestação artística. A propaganda do seu estúdio também traz ícones da modernidade – a máquina fotográfica e o automóvel, veículos de aceleração e circulação de informação. Rossi soube apreender seu tempo e trabalhar nesse momento pré-moderno com questões que posteriormente serão temas do movimento modernista.

Gilberto Rossi, Autorretrato (fotomontagem), c.1910

Curiosamente, em 1911, o brasileiro Valerio Vieira (1862-1941) exibiu seu trabalho na Feira Internacional de Turim, Itália. Ainda não sei se há conexão entre Vieira e Rossi, mas os dois trabalhos tem aproximações interessantes. Com certeza, a obra de Vieira tem especificidades técnicas e estéticas que estavam à frente do seu tempo e parece antecipar o momento de inserção do Brasil numa experiência moderna. Ousado em suas propostas, marcou sua produção artística com soluções técnicas revolucionárias para sua época, subvertendo todos os parâmetros de visualidade a partir de uma produção singular, desenvolvida nas primeiras décadas do século passado, ou seja, bem anterior à Semana.

Sua obra mais conhecida, Os Trinta Valérios, produzida por volta de 1900, premiada com a Medalha de Prata na Louisiana Purchase Exposition, em St. Louis, EUA, em 1904, é com certeza o paradigma da modernidade da fotografia brasileira. Através desta imagem, ele buscou na fotografia não só um meio que registrava com perfeição o mundo visível, mas uma linguagem capaz de expressar ideias próprias, mostrando que o artista com a câmera pode ser imaginativo e criar obras de complexidade incomum. O artista entendeu precocemente a fotografia como direção, arranjo e combinação.

Valério Vieira, Os trinta Valérios, c. 1900

Os Trinta Valérios, uma fotomontagem sensacional, traz uma inédita composição de autorretratos articulados num sofisticado painel mostrando uma imaginação desconcertante, desconhecida até então na fotografia brasileira.

Com estes exemplos defendemos que, no caso da fotografia, entre alguns profissionais havia aqueles que estavam realizando pesquisas e experiências típicas das vanguardas e que, por algum motivo, não foram incorporados na Semana de Arte Moderna. Voltaremos a este assunto que estamos investigando há alguns anos. Os modernistas que radicalizaram suas experiências estéticas, entre eles Mario de Andrade, perceberam tardiamente a importância da fotografia na cena cultural brasileira naquele momento da modernidade.

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Jornalista, curador e crítico de fotografia, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professor e diretor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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