Sou “revisteiro” assumido e já declarei minha paixão pelas revistas, principalmente por aquelas que fizeram história e hoje estão quase esquecidas pelas novas gerações. Gostaria de recuperar um título pouco conhecido cuja experiência é importante para entendermos algumas das articulações desencadeadas nos anos 1970 para a sobrevivência do jornalismo sério e competente em plena ditadura. Trata-se da revista Bondinho, de periodicidade quinzenal, editada por Arte & Comunicação, que também editava a Grilo, de quadrinhos, e a Revista de Fotografia. Inicialmente Bondinho foi patrocinada pelo Grupo Pão de Açúcar que a distribuía gratuitamente em suas lojas e supermercados.
Mais uma vez, busco incluir na história da fotografia experiências que nem sempre são consideradas relevantes pelo mainstream. A revista Bondinho foi criada por um grupo de jornalistas e fotógrafos, em sua maioria desligados da revista Realidade, da editora Abril, que teve seu período áureo entre 1966 e 1968. A primeira edição foi em novembro de 1970 e, até dezembro de 1971, foi bancada pela rede de supermercados. Pelo trabalho desenvolvido nesse período, recebeu o Prêmio Esso de Contribuição à Imprensa.
A equipe era das mais brilhantes: Woille Guimarães, Narciso Kalili, Roberto Freire, Mylton Severiano da Silva, Sérgio de Souza, Hamilton Almeida, Odiléa Toscano (editora de ilustração), George Love e Cláudia Andujar (editores de fotografia), Carlito Maia (Relações Públicas), entre muitos outros. A tiragem inicial foi de cem mil exemplares e sua equipe, incrível e fora do comum, fazia uma revista tendo como referência o new journalism com textos literários e reportagens baseadas na vivência dos fatos.
Com George Love e Cláudia Andujar como editores de fotografia fica perceptível a presença qualitativa de fotógrafos experientes e de alguns jovens que começavam a se destacar no mundo das imagens. Entre eles, Djalma Batista, que assina a polêmica capa e a matéria da primeira quinzena de dezembro de 1971 – “Movimento de Libertação Gay”, tema pouco debatido naquele cenário imposto e controlado pela ditadura militar.
Em julho de 1971, a revista produziu uma capa com o jovem ídolo Roberto Carlos. A novidade fotográfica é o conjunto de retratos do rei do ie-ie-ie feitos por ele mesmo, estimulado que foi por George Love. Ou seja, são autorretratos (selfies) realizados pelo cantor e compositor acompanhado de um belo texto assinado pelo psicanalista Roberto Freire. No pé da página pode-se ler “Distribuído exclusivamente nas lojas Pão de Açúcar – sirva-se”.
A idéia desta matéria era publicar uma série de cartas das fãs de Roberto Carlos. Não falar propriamente sobre a pessoa ou sobre o cantor, e sim da imagem que as admiradoras tinham dele. Diante disso, George Love convenceu o cantor a ficar diante de um espelho e clicar sua imagem. Depois de dois rolos de filme, ele ficou sozinho numa sala e, à vontade, fez um terceiro filme buscando expressões bem diferentes daquelas que normalmente jornais e revistas publicavam. Roberto Freire registrou na Revista de Fotografia numero 3, de agosto de 1971, que neste terceiro rolo “mudamos a tática e a posição da máquina, sugerindo-lhe que passasse a brincar consigo mesmo, até fazendo caretas se quisesse. Comentamos, inclusive, a famosa foto de Einstein que virou pôster; o genial cientista com a língua de fora. Foi a mais rápida das sessões. Roberto Carlos divertiu-se muito e pudemos perceber que algumas das caretas ele usava para brincar com o filho.”
A cada edição a revista inovava. Outra experiência inédita na imprensa brasileira foi a invasão de doze repórteres da revista Bondinho na redação do jornal da tarde (tudo em caixa baixa pois tratava-se do “filho rebelde” do jornal conservador O Estado de S. Paulo) em setembro de 1971. A capa, desenhada pelo saudoso e talentoso Murilo Felisberto, redator-chefe do jornal da tarde, mostra uma iniciativa incomum na imprensa brasileira – uma revista independente permanece 20 horas em outra redação para descrever o processo de trabalho do emblemático jornal paulistano que circulou entre 1966 e 2012. Uma pauta quase impensável para os dias de hoje.
A redação do Bondinho chegou a ser frequentada por aproximadamente 80 pessoas que se encontravam temporariamente afastadas das redações da grande imprensa, por uma série de motivos políticos. Bondinho sem nenhuma dúvida criou um novo espaço para a esquerda brasileira associada à contracultura não alienada. Sua tiragem alcançou 400 mil exemplares e isso levou a revista às bancas, já sem o seu patrocinador principal. Em maio de 1972, após treze edições independentes, fechou suas portas porque não aguentou a ação da censura e a falta de anunciantes que poderiam ter patrocinado parcialmente a publicação.
Nesse período, mesmo com a falta de investimento publicitário, suas edições são memoráveis. Além de uma paginação arrojada e pequenos ensaios fotográficos a cada matéria, temos também a publicação de entrevistas que fizeram história no jornalismo do início da década de 1970. Claro que temos que destacar o papel de George Love e Cláudia Andujar que, sem dúvida, desempenharam com inteligência e leveza a função de editores de fotografia do Bondinho e também da Revista de Fotografia.
Recentemente, a Azougue Editorial publicou o livro “Entrevistas da Bondinho”, organizado por Sergio Cohn e Miguel Jost, que traz 34 destas entrevistas. Capas como a do Gilberto Gil (matéria assinada por David Zingg, entre outros) e a do Caetano Veloso (assinada por Walter Firmo) mostram a força da temática independente e da imagem fotográfica.
Foram 42 edições entre novembro de 1970 e maio de 1972. A presença da fotografia na revista é forte e merece nossa atenção. Afinal, o momento era de efervescência política e cultural. A fotografia assume um papel relevante dentro desse cenário, já que as imagens veiculadas pela televisão estavam amparadas e asseguradas mediante censura prévia e cabia ao jornalismo impresso alternativo a exploração de um discurso visual mais contundente e provocativo.
Por tudo isso torna-se necessário revisitar algumas publicações desse período, o Bondinho em particular, com um olhar mais crítico para trazer à superfície a força e a autenticidade dessas experiências que floresceram à sombra da ditadura. Analisar os ensaios fotográficos com todo seu poder contestatório, de inovação visual e inconformismo político é um saudável exercício de plena liberdade editorial.
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