:-) Rostos

[18.jul.2016]

Brassaï, Graffiti, Série III: O Nascimento do Rosto, 1935-50

Brassaï, Graffiti, Série III: O Nascimento do Rosto, 1935-50

Brassai - Graffiti, 1935 - 1950

Brassaï – Graffiti, 1935 – 1950

Precisamos de muito pouco para ver um rosto. Rapidamente, dois pontos num espaço vazio tornam-se olhos. Quantas vezes, rabiscando à toa num pedaço de papel, essa forma nos apareceu quase que por conta própria?

Recentemente, tive um contato mais intenso com a série de graffiitis registrados por Brassaï, em Paris, ao longo de trinta anos*. Eu me detive particularmente sobre algumas imagens que mostram justamente rostos. São intervenções anônimas nas paredes da cidade, mas é fácil identificar um dos princípios a que respondem: dois ou três buracos na parede que demandam uma face. O mérito do graffiti é dar vida a elementos recalcados da paisagem. Não fossem os nossos movimentos pelas ruas tão anestesiados, mal precisaríamos do desenho para a ver esses rostos. Geraldo de Barros, outro olhar atento, não precisou aguardar que alguém interviesse nos muros: partia das marcas em estado bruto e ele próprio se encarregava de grafitar seus negativos.

Geraldo de Barros, Homenagem a Paul Klee, 1949

Geraldo de Barros, Homenagem a Paul Klee, 1949


Geraldo de Barros ,1948

Geraldo de Barros ,1948

Brassaï via nessas inscrições algo de arcaico: ele as relacionava com as pinturas rupestres. Os gestos que vemos nos muros de Paris devem ter motivações diversas. Há neles algo de estético, de lúdico, de subversivo, e uma relação profunda com o que é a cidade moderna. Mas parece mesmo restar algo de um pensamento mágico ancestral: antes de serem criados, esses rostos foram encontrados nas paredes, assim como cavalos e bisões também já estavam nas protuberâncias das cavernas, antes de ganharem um contorno mais preciso.

Essa relação com o arcaico é para mim tão convincente que resisto um pouco à observação de Brassaï de que esses graffitis são imagens efêmeras. Como inscrições, elas assumem uma dimensão quase arqueológica, porque parecem mais antigas do que a argamassa que às suporta.

Brassaï, Graffiti da Série III, O nascimento do homem, 1935 – 1950

Brassaï, Graffiti da Série VI, L’Amour, 1935 – 1950

Enquanto percorria as fotos de Brassaï, lembrei de três referências desconexas, três leituras que, para mim, sempre permaneceram enigmáticas, tanto quanto esses graffitis parecem agora:

1. “Ano Zero – Rostidade” (Mil Platôs – Vol. 3) é um texto de Deleuze & Guattari que nunca cheguei a entender suficientemente, mas que compõe uma memória afetiva (foi justamente tentando dar conta de Mil Platôs que, em 2010, eu, Pio Figueiroa e Livia Aquino começamos a nos reunir para trabalhar juntos). As fotos de Brassaï me remeteram a uma expressão que esses pensadores repetem umas tantas vezes: eles falam de um “sistema muro branco – buraco negro”, elementos básicos que compõe a rostidade. Segundo eles, o rosto oferece uma espécie de anteparo sem o qual os significantes não ganhariam forma para produzir seus significados. É também o lugar onde uma subjetividade encontra ressonância. Eu diria, tentando facilitar para mim mesmo: no rosto, o muro branco é a superfície que acolhe o significante – as construções da linguagem – e ajuda a reverberar um sentido; já buraco negro é o que faz esse sentido adentrar o universo de uma subjetividade, pertencer a alguém que dá movimento a esse significante. O sistema “muro branco-buraco negro”, segundo eles, não se transforma num rosto por uma tendência antropomórfica (pela imitação da forma humana). Ao contrário, os rostos concretos que reconhecemos nascem de uma máquina abstrata de rostidade, que irá produzí-los ao mesmo tempo em que dá ao significante seu muro branco, e à subjetividade, seu buraco negro. Mesmo que não alcance o sentido pleno do que dizem aqui, tenho a impressão de que já vi muitas vezes essa máquina de rostidade trabalhar em mim. Eu a vejo no gesto que produziu alguns dos graffitis registrados por Brassaï.

Chris Marker, La Jetée (Fotograma), 1963


Brassai, Graffiti, Série VII, A Morte, 1935-50

Brassaï, Graffiti, Série VII, A Morte, 1935-50

2. La Jetée (1963), o célebre “photo-roman” de Chris Marker, é a história de um homem que viaja no tempo guiado por um rosto que ficou cravado na memória que carrega de um acontecimento traumático. Ao longo do filme, inscrições nas paredes – assim como obras de arte e construções em ruínas – aparecem em cenas diversas. O narrador assim descreve o encontro entre o personagem e a mulher de cujo rosto ele nunca esqueceu: “eles estão ali, sem lembranças, sem projetos. Seu tempo se constrói simplesmente em torno deles, tendo como única marca o gosto do momento que eles vivem, e os sinais nas paredes” (as inscrições da imagem acima). É uma referência que permanece completamente solta no filme, sem qualquer funcionalidade específica na trama (ela ganhará uma explicação um tanto mirabolante na releitura que Terry Gilliam faz de La Jetée, em Os 12 Macados). Vemos ali rostos parecidos com os de Brassaï. Sabemos que Marker conhecia sua obra. Mas é desnecessário supor que se trata de uma citação. As imagens tem vida própria e produzem elas mesmas seus diálogos.

Brassaï – Graffiti da Série VII, A Morte, 1933 – 1956

3. Em O que vemos, o que nos olha, Didi-Huberman resiste à ideia de que as obras dos artistas minimalistas das décadas de 1960 e 70 se limitam à obviedade de suas superfícies, e busca nelas uma interioridade pouco compreendida. Seu paradigma é a forma de um túmulo: há nele a geometria simples de seu volume, mas há também a profundidade da morte, que vai muito além de seu espaço físico. Como esse objeto, algumas imagens estabelecem com o sujeito que olha uma “dupla distância”: uma demarcada por aquilo que está próximo e evidente, sua superfície, outra que aponta para uma interioridade distante e inapreensível. É justamente por essa segunda distância que escapa à decodificação do olhar que, segundo ele, abrem-se fissuras por onde “somos vistos”. Com isso, o objeto que visto se torna, também ele, um sujeito. Seguindo rente à compreensão que Walter Benjamin traz da história, Didi-Huberman sugere que “o que nos olha” na imagem é justamente uma temporalidade que nela se cristaliza, e que permanece viva, atuando sobre o presente daquele que se dirige a ela. Isso aponta para uma das definições de “aura” trazida por Benjamin: a capacidade conferida aos objetos de erguer o olhar para aquele que olha. Sabemos que Paris, redesenhada no século XIX pelo prefeito Haussmann, carrega uma história muito mais tortuosa que o traçado de suas novas ruas, muito mais espessa que a superfície de seus muros. Inevitável que um olhar oriundo dessa história transborde dessas paredes. Não por acaso, a tentação nos graffitis de transformar esses orifícios em rostos. Seria insuficiente dizer que o muro nos devolve o olhar apenas porque nele foram demarcados um par de olhos. A questão é inversa: é de onde vem o impulso de dar olhos aos muros. Numa definição mais conhecida de “aura”, Benjamin nos diz que ela tem a ver com a manifestação de uma distância, por mais próximo que o objeto esteja. Até onde chega a profundidade desses orifícios mais profundos que seus muros? Seguindo Brassaï, podemos dizer que eles vão na direção de um gesto primitivo, aquele que permitiu, nas paredes das cavernas, realizar as primeiras imagens que a humanidade conheceu. Esse olhar não precisa efetivamente de um olho: sua fissura é percebida como sintoma produzido pela imagem, portanto, como um movimento que não se localiza com precisão. Mas, porque não? Pode ocorrer das duas coisas – a forma do olho e o olhar do tempo – virem juntas. Didi-Huberman lembra que Benjamin reconhece essa dupla distância produzida pela aura na forma de uma caveira, com seus dentes que se projetam para frente, com a cavidade ocular que nos traga para um espaço que não se pode medir. A caveira é um lugar em que o olho da face humana se mostra em sua realidade de buraco negro, como nas paredes fotografadas por Brassaï.

Brassaï, que chegou à Paris como imigrante, ajudou a inscrever parte do imaginário que carregamos dessa cidade. Hoje, ele mesmo é parte de sua história e, com seus olhos grandes, também nos observa pelos orifícios que vemos nessas paredes.

John Loengard. Brassai, 1981

John Loengard. Brassai, 1981

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* Essa série de Brassai é analisada pela pesquisadora Letícia Freire, em sua dissertação “Brassaï: poéticas visuais e trajetórias urbanas”, orientada por Olgária Matos (FFLCH-USP, 2016). Este texto é um arranjo das sobras das anotações que fiz para a arguição em sua banca.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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