Viva Farkas!

[29.mar.2011]

Thomaz Farkas, São Paulo, década de 40

Na última sexta-feira a fotografia brasileira perdeu o seu maior entusiasta: Thomaz Farkas. Também o cinema perdeu a inteligência e a sensibilidade de um dos nomes mais emblemáticos da imagem criativa da segunda metade do século XX. Trabalhamos juntos na Coleção Pirelli-Masp por 20 anos e em muitas outras oportunidades. Posso afirmar que sua alegria de viver intensamente todos os momentos sempre foi explícita e a imagem, em particular a fotografia, foi uma das suas paixões mais delirantes.

Desde o início dos anos 1940, quando participa do Foto Clube Bandeirante, inaugurado em 1936, sua vida foi pautada pela criação e propagação da fotografia brasileira. Em 1949 realiza a convite de Pietro M. Bardi a primeira exposição de fotografia no Masp. No começo dos anos setenta publica uma revista mensal que durante anos foi referência para toda uma geração de fotógrafos brasileiros e em outubro de 1979 concretiza a Galeria Fotóptica, especializada em fotografia. Tornou-se um empreendedor cultural muito antes da era dos patrocínios e dos burocratas da cultura. Também foi professor da Eca-Usp, presidente da Cinemateca Brasileira e membro do Conselho da Bienal Internacional de São Paulo.

Ele sempre explicitou sua preferência pela fotografia documental e pelo fotojornalismo. Com sabedoria defendia a fotografia como uma possibilidade de expressar e sintetizar as emoções humanas. Sua simplicidade de análise significava que independentemente dos procedimentos utilizados, a imagem jamais deveria estar associada a justificativas e explicações, pois qualquer tipo de verbalização retira da fotografia o seu mistério. “A fotografia emociona ou não emociona”, dizia Farkas a partir de sua sofisticada experiência com a imagem.

Sabemos hoje que Farkas foi um dos mais criativos fotógrafos da chamada Escola Paulista, mas ao assumir a direção da Fotóptica, centrou sua energia num arrojado projeto de fortalecimento da marca durante décadas. Imerso neste mundo do trabalho, sem nunca se desvincular do cinema e da fotografia, seu trabalho fotográfico reaparece somente nos anos noventa e tornado público se insere definitivamente na cronologia da fotografia brasileira. Após exibir, valorizar e publicar centenas de fotógrafos é que timidamente resolveu mostrar sua produção.   Aparentemente um paradoxo, mas na realidade isso evidencia sua personalidade generosa e seu caráter ético inquestionável.

Sempre se assumiu como um fotógrafo amador. Amador na essência etimológica mais expressiva – aquele que ama o que faz. Por isso mesmo seu trabalho é admirado e surpreendente. Valorizava a fotografia instintiva, intuitiva, consciente de que “enquadrar é eliminar tudo aquilo que está atrapalhando”. Basta ver seus trabalhos em exposição no Instituto Moreira Salles para entender com mais clareza suas idéias. Quando há um formalismo construtivo dominando a imagem, elas são pontuadas pela geometria e beleza, equilíbrio e leveza, ou seja, aquilo que ele defendia como sendo uma “visão essencial”. Sua fotografia transita pelas linhas diagonais, que geram assimetrias e ordenações rítmicas vertiginosas.

Thomaz Farkas, Rio de Janeiro, 1945.

Dentro do movimento da fotografia paulista moderna, tardia diga-se, Thomaz Farkas, ao lado de Geraldo de Barros, Benedito Junqueira Duarte, German Lorca entre outros, produziu uma fotografia provocativa, centrada em parte no questionamento das referências visíveis, buscando descolar a imagem técnica de uma leitura mais imediata. Sua fotografia tornou-se paradigma da melhor fotografia produzida de forma independente nesse período, que desestruturou a tradição pictorialista e acadêmica do movimento amador.

Farkas com seu ímpeto transformador, seu espírito inquieto e seu olhar apurado colabora para esta nova fotografia que percorre o Brasil e o mundo através dos salões e dos concursos promovidos pelos fotoclubes. Mas isso foi insuficiente para o jovem que buscava fazer outra fotografia. Queria não apenas exibir-se, mas principalmente trocar idéias, revolucionar o pensamento visual. Essa atitude decorre do acesso que teve aos livros e revistas estrangeiras que circulavam pela empresa familiar, a Fotóptica. Daí as influências perceptíveis das vanguardas históricas, tanto na série surrealista que desenvolveu com os amigos da Escola Politécnica, quanto na série sobre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, quando radicalizou o registro sem grandes interferências no “real”, e articulou novos e inusitados ângulos de tomada, cortes e aproximações geométricas de toda ordem.

Manteve contato com o fotógrafo norte-americano Edward Weston e de alguma forma os trabalhos de Moholy-Nagy, Alexander Rodtchenko, André Kertész foram inspiradores durante o seu percurso. E claro, as fotografias de Robert Capa e Cartier-Bresson, também o fascinava. Nessa mistura fina entre o documental e a experimentação é que desenvolveu um trabalho que aos olhos de hoje podemos afirmar que é perturbador justamente porque é múltiplo, vibrante e intenso.

A obra fotográfica de Thomaz Farkas tem uma surpreendente coerência interna porque articula uma ordem formal na desordem dos signos cotidianos. Ele produz uma fotografia direta que provoca uma nova maneira de ver, capaz de desorientar os sentidos e nos conduzir a estranhos silêncios. A renovação é a tônica do seu trabalho porque além de situar a fotografia no terreno da expressão artística, interroga-a permanentemente. Um diferenciado conjunto visual, carregado de emoção, que se transformou numa das experiências mais criativas da fotografia brasileira.

Encerramento do 2a Seminário de Cinema e Fotografia da Facom-FAAP, 2010

Perdemos Thomaz Farkas, um amigo carinhoso que vivia sob o signo intenso da paixão, mas suas lições (nunca intencionais claro) e suas fotografias estarão presentes para todo o sempre em nossas memórias. Viva! Viva a fotografia!

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Jornalista, curador e crítico de fotografia, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professor e diretor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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