Recentemente tive acesso ao livro Caio Prado Jr – o legado de um saber-fazer histórico, editado em 2013 pela Hucitec e organizado por Antonio Gilberto R. Nogueira e Adelaide Gonçalves, ambos professores do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará. A edição é composta de 7 ensaios e uma preciosa cronologia. O ensaio que chamou minha atenção é assinado pelo Antonio Gilberto R. Nogueira, denominado “O Nordeste em diapositivo: o viajante, o fotógrafo e a escrita da história”.
Antonio Gilberto torna público, pela primeira vez, uma série de 78 fotografias selecionadas a partir de um conjunto composto por 150 diapositivos ordenados numa caixa de metal nomeado de viagem ao Nordeste, 1955. Os slides estão cuidadosamente montados em um frame de alumínio protegido por uma pequena lâmina de vidro e adquiriram um tom azulado esmaecido após mais de 60 anos. A caixa de metal traz também uma ficha, com cada diapositivo numerado evidenciando o percurso percorrido e o roteiro sugerido por Caio Prado Jr. para que tenhamos a exata noção do seu itinerário, através das paisagens rurais, urbanas e dos retratos das pessoas que habitam a região.
É interessante lembrar que na primeira metade do século XX, com a compactação e barateamento das câmeras e a consequente democratização do fazer fotográfico, inúmeros profissionais liberais e alguns intelectuais se aventuraram a produzir fotografias. Particularmente em São Paulo, parte dos profissionais liberais se agrupou em torno do Foto Cine Clube Bandeirante (FCCB), inaugurado em 1939. Outra parte expressiva se desenvolveu na fotografia amadora, responsável por uma enorme quantidade de imagens realizadas em suas viagens e nos encontros familiares. E, finalmente, um pequeno grupo de professores e intelectuais que produziu fotografias que foram em parte utilizadas em suas pesquisas e outras responsáveis pelos seus experimentos pessoais.
Vemos que a fotografia cumpriu um papel fundamental ao estimular indistintamente, pessoas de origens diversas que deixaram registros variáveis sobre os seus diferentes cotidianos. Ao nos depararmos com um conjunto de fotografias antigas imediatamente operamos por associação à ideia de que estamos diante de documentos, seja pela quantidade de informações e referências de época, seja pela possibilidade verossímil que elas adquiriram com o tempo passado.
Conhecer agora as fotografias das viagens de estudos de Caio Prado Jr. (1907 – 1990) é constatar que as imagens trazem uma narrativa que revela não apenas o olhar do pesquisador mas, acima de tudo, o quanto a fotografia foi determinante para registrar alguns aspectos de nossa cultura e de nossa identidade. E também verificamos que ele não estava sozinho nessa jornada, pois já é do conhecimento público os trabalhos fotográficos dos escritores Mario de Andrade e Monteiro Lobato, do antropólogo Claude Lévi-Strauss, do engenheiro Manoel Rodrigues Ferreira (um dos primeiros a fotografar a “Ferrovia do Diabo” e tornar público o trabalho do fotógrafo norte-americano Dana Merrill, por décadas totalmente esquecido), do arquiteto Gregory Warchavchik, entre outros.
No caso específico de Caio Prado Jr. tomamos conhecimento de que ele utilizava a fotografia como um instrumento indispensável para elaborar seu método de investigação e sistematização das informações recolhidas, incluindo, claro, os valorosos relatos orais anotados durante a viagem ao Nordeste, em 1955. Neste conjunto de 150 slides, rigorosamente identificados, há uma narrativa descritiva que não apenas evidencia as especificidades regionais, como também traz o percurso da sua viagem de estudos – Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte.
O pesquisador Antonio Gilberto selecionou 78 imagens inéditas para tornar pública a imersão de Caio Prado Jr. no universo da fotografia. Essa necessidade de registrar visualmente suas pesquisas, segundo o autor do ensaio, foram estimuladas a partir da segunda metade dos anos 1930, ocasião em que as excursões de campo “abriram as perspectivas para a construção de um conhecimento em que as viagens e as fotografias tornaram-se importantes ferramentas na apreensão da relação entre o meio geográfico e modos de vida”.
Caio Prado Jr. construiu uma obra consistente ao longo da vida. Seus estudos tiveram início na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco entre 1924 e 1928, numa década em que São Paulo passou pela Semana de Arte Moderna (1922) e pela Revolta Paulista de 1924, liderada pelo general Isidoro Dias Lopes. Também cursou Geografia e História e fundou a Associação dos Geógrafos Brasileiros. Em 1942 publicou o clássico livro Formação do Brasil Contemporâneo, que ao lado de Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freire, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, compõe a tríade analítica de leitura obrigatória para conhecer o funcionamento das estruturas sociais do Brasil.
O que é interessante em suas imagens é verificar o quanto elas representam e legitimam as intenções do pesquisador e o quanto elas são evidências testemunhais de um processo investigativo que busca, através das fotografias, apoiar e enfatizar suas preocupações com o patrimônio cultural brasileiro. Nesta viagem teve a companhia de sua segunda mulher, Helena Maria Nioac (Nena) e de seu fusquinha azul, carinhosamente apelidado de “perereca”. A viagem, notadamente privada, é para Antonio Gilberto “mais um vestígio de como o privado e o público se fundem em sua obsessiva busca por apreender a experiência histórica nacional”.
Raramente encontramos em suas fotografias o apuro estético dos modernistas do FCCB, mas invariavelmente nos deparamos com uma imagem bem enquadrada, quase sempre com algum equilíbrio entre as linhas e os volumes, acentuando seu caráter denotativo e uma precisão nos dados de ordem antropológica. Na imagem denominada “Olinda mocambos”, percebemos um conjunto de habitação característica daquela região, inserido numa paisagem tipicamente tropical. Os mocambos enquadrados da esquerda para a direita insinuam diagonal ascendente que obriga nosso olhar percorrer a imagem nessa mesma direção imposta pelo fotógrafo.
Em seu autorretrato acima publicado vemos sua opção pelo pequeno formato, o mesmo dos diapositivos. Para Caio Prado Jr. a fotografia foi um instrumento de registro e documentação para ampliar suas pesquisas nas ciências humanas. Como escreveu André Rouillé a respeito de uma expectativa em torno dessas imagens, “a fotografia vai contribuir para modernizar o conhecimento; em particular, o saber científico. Modernizar é, essencialmente, abolir qualquer subjetividade dos documentos; registrar, sem esquecimento nem interpretação, para autenticar, ou para substituir, o próprio objeto.”
O ensaio “O Nordeste em diapositivo: o viajante, o fotógrafo e a escrita da história” propõe outros olhares para a fotografia brasileira, ampliando e pluralizando novas formas de pensar a imagem. Caio Prado Jr, intelectual militante, eleito deputado estadual comunista em 1947 pelo PCB, valoriza o ver e o estar lá. Utilizou a fotografia como mediação necessária para apreender e compreender a realidade brasileira. Suas fotografias se constituem como um rico repertório imagético que sistematiza e generaliza uma realidade local desse período.
A produção fotográfica, sabemos, é um imenso iceberg do qual pouco sabemos. Esse conjunto de imagens que agora enriquece a iconografia brasileira surge num momento em que é crescente o desejo dos pesquisadores de conhecer os inúmeros canais que são a parte submersa desse iceberg e que precisam ser desobstruídos para acentuar as conexões e estabelecer os movimentos de transição entre eles. Cada vez mais, devemos entender a fotografia brasileira a partir dessas possibilidades de construir pontes e conexões entre as diferentes esferas de sua produção e uso. Somente assim, compreenderemos a complexa trama que se impõe diante de nós pesquisadores a cada nova pesquisa apresentada.