Sobre pixels e cicatrizes de guerra: a sobrevivência do testemunho na fotografia digital

[05.set.2011]

Onde a revolução digital não aconteceu

Há vinte anos, especulávamos sobre os impactos das câmeras digitais que estavam para chegar ao mercado, tentávamos entender a mudanças no estatuto das imagens que elas produziriam, e prevíamos uma crise em sua credibilidade pelas facilidades de manipulação. Autores como André Rouillé sugerem que estamos diante de uma imagem de natureza tão distinta, que é um equívoco chamá-la ainda de fotografia (A fotografia, p. 16 e 452). Na prática, creio que essa mudança na forma de inscrição da imagem tenha desdobrado em promessas e ameaças não se realizaram plenamente. No fotojornalismo, lugar em que o debate assumiu um tom apocalíptico, os profissionais trocaram seus equipamentos sem grandes sustos e os leitores continuaram acreditando no que viam quando abriam seus jornais durante o café da manhã.

Quanto às possibilidades de manipulação, essa é uma questão que transcende as tecnologias digitais. De um lado, o Photoshop não me parece ter incrementado significativamente os deslizes da ciência ou do jornalismo: continuamos descobrindo, vez ou outra, e como sempre, imagens e relatos que conduzem de modo mal-intencionado a leituras ambíguas ou equivocadas dos fatos. De outro, discutimos sempre com moralismo as possibilidades de projeção do imaginário sobre a realidade, essa nossa tendência arcaica para a criação de mitos, experiência saudável e correlata à nossa vocação estética. Às vezes, é preciso abandonar os fatos para buscar na realidade aquilo que pode fazê-la tocar outros tempos e lugares: a guerra de Tróia tornou-se uma síntese de nossa civilização mais pelas palavras de Homero do que pela sua suposta existência efetiva; nada conseguiu nos implicar tanto na Guerra Civil Espanhola quanto a encenação produzida por Robert Capa; ao inventar uma guerra, com toda evidência de seu Photoshop, a Cia de Foto mostrou onde ela realmente está: aqui, bem do nosso lado.

Cia de Foto, da série “Guerra”, 2008

Esse longo estado de alerta criado alimentado pela ameaça superdimensionada da fotografia digital tem algumas consequências problemáticas. Podemos rever isso por meio de exemplos já bem conhecidos:

Primeiro, essa tensão nos coloca numa posição demasiadamente defensiva, como demonstra a desclassificação por “excesso de Photoshop”, de uma fotografia no concurso dinamarquês “A imagem do ano”. A saturação conseguida com o Photoshop é tão artificial quanto o “preto e branco” do fotojornalismo clássico, tão artificial quanto o “verde Fuji” ou o “verde Kodak”, como lembrava Flusser (Filosofia da caixa preta, p. 39-40).

Foto de Klavs Bo Christensen rejeitada pelo concurso “Picture of the year” (e a imagem apontada como original).

Segundo, obscurece o fato de que os abusos mais descarados continuam sendo cometidos com um recurso um tanto analógico: a encenação. Como exemplo, vemos abaixo que o rapaz resgatado dos escombros de um bombardeio no Líbano aparece em outras imagens do mesmo ensaio, perfeitamente saudável, ajudando a salvar outras vítimas. A correção feita pelo New York Times manteve a imagem, acrescentando na legenda a informação de que ele não havia se ferido durante os bombardeios, mas sim durante as operações de resgate.

Tyler Hicks / The New York Times, 2006

Terceiro, esse estado de alerta nos impede de ver o quanto a presença do Photoshop, que parecia estranha às práticas fotográficas, pôde ser bem assimilado por alguns rituais de comunicação e a memória que envolvem a fotografia. Hoje, podemos reconhecer com certa tranquilidade o Photoshop de alguns autores como uma espécie de assinatura, nada diferente de quando distinguíamos a luz de Eugene Smith, a composição de Cartier-Bresson, o enquadramento de William Klein, a cor de Miguel Rio Branco. Por exemplo, podemos identificar o tratamento peculiar que gUi Mohallem dá às suas imagens, atravessando indistintamente processos analógicos e digitais: ele expõe e revela seus negativos de um modo tal que as cores quase desaparecem, para depois reconstituí-las através de intervenções na imagem digitalizada. Apesar de toda a manipulação que assume, seu trabalho não abandona o compromisso de traduzir a experiência que teve com aquilo que estava diante de sua câmera, isto é, não perde sua dimensão de documento e memória.

gUi Mohallem, da série “Welcome Home”, 2010

Podemos pensar uma experiência mais amadora dentro dessa mesma perspectiva: um jovem ainda pode reconhecer numa foto feita com o celular, com alguma dose de nostalgia, a boa experiência que teve neste último fim de semana, mesmo sabendo que todo aquele clima conseguido na imagem é puro artifício do Instagram.

Como sempre, as possibilidades de manipulação estão aí e, como sempre, reconhecemos a fotografia como memória. No final das contas, o testemunho tem menos a ver com a materialidade do registro do que com um valor que seguimos depositando na imagem.

 

Codificação e testemunho

Com um pouco mais de sutileza do que Rouillé, Fontcuberta também se pergunta sobre o que resta da fotografia “após a fotografia”, isto é, após a mudança dos paradigmas que moldaram o modo como a compreendemos (La Cámara de Pandora). Ele admite que a fotografia digital assume as antigas tarefas de comunicação e de memória da fotografia analógica, e parece ver nisso certo anacronismo, já que também reconhece na fotografia digital uma mudança de “natureza”, gerando sempre uma imagem “retocada” ou “processada” (pg. 12-13). E conclui: “a fotografia analógica tende a significar fenômenos, a fotografia digital tende a significar conceitos” (p. 14). Por mais que tentemos encerrar o debate ontológico (sobre uma “essência” peculiar a cada tipo de imagem), retornamos a ele. Decupando o sentido da técnica, Vilém Flusser já havia dito sobre a fotografia analógica algo semelhante ao que Fontcuberta observa na fotografia digital. Para Flusser, nenhuma fotografia é capaz de significar diretamente um fenômeno: o aparelho opera “teorias” sob a forma de um “programa” e, com isso, “transforma conceitos em cenas” (Filosofia da Caixa Preta, p. 39). A fotografia digital apenas escancara uma codificação que, no caso da fotografia analógica, demoramos a intuir. Mas isso ainda não foi suficiente para revogar o papel que a imagem cumpre para a comunicação e para a memória. Fontcuberta não é alheio a isso. Mesmo com as premissas que assume, ele não busca simplesmente denunciar a falência de um antigo paradigma, ele manifesta ao longo das crônicas que apresenta nesse livro a esperança de seguir encontrando a fotografia nessa cultura pós-fotográfica.

Não vejo grande contradição entre o uso da fotografia como documento e o reconhecimento de sua nova natureza escancaradamente codificada. Creio que os rituais sociais que definem o caráter documental da fotografia foram perfeitamente capazes de assimilar não apenas o aspecto volátil da nova imagem (o fato de que, na maior parte do tempo, ela é apenas dados), mas também a presença explícita de suas possibilidades de tratamento e manipulação.

De modo mais amplo, o valor documental que um objeto pode assumir não tem a ver com ausência de codificação, ou com a ignorância da codificação, mas com aceitação coletiva dos códigos em questão. Por exemplo, o caixa do supermercado pede minha carteira de identidade para constatar que não estou usando o cheque de outra pessoa, não porque acredite que meu RG seja grafado com meu próprio sangue, mas porque confia na autoridade que relaciona aquele pedaço de papel a mim. Podemos falsificar carteiras de identidade, como podemos forjar fatos usando o Photoshop mas, na média de nossas experiências, ainda há razões para acreditar que eu estava lá quando aquele número de RG foi atribuído, ou que eu estava lá quando aquela foto digital foi feita. Ficamos expostos a riscos quando a autoridade que define o valor desses documentos nos parece natural, e é preciso sim haver consciência crítica esses processos de legitimação de um procedimento técnico. Mas é inútil denunciar o papel codificador de um aparelho (seja o aparelho judicial, seja o fotográfico) supondo haver, em algum lugar, um estado puro e não-ideológico das coisas.

Outra analogia: uma marca deixada pela realidade pode ser gerida por códigos culturais, sem que isso inviabilize seu poder de testemunho. Não há incompatibilidade alguma entre esses estatutos múltiplos que a imagem pode assumir. Imagine um ferimento de guerra, memória intensa porque inscrita no corpo, mas também comovente porque ligada à causa pela qual se lutou. Foi o desrespeito a uma regra de convivência (uma fronteira geopolítica, um tratado econômico, os direitos humanos…) que fez esse homem se expor como alvo ao seu oponente, assim como foi um universo de convenções que fizeram do seu ferimento motivo de orgulho. A cicatriz trazida da guerra está inserida num regime de significação muito diferente daquele que rege, por exemplo, a cicatriz deixada por uma cirurgia de apêndice, que esse mesmo corpo pode exibir. Isso significa que a fotografia analógica, entendida como marca deixada pela realidade, ainda depende de convenções que confirmem seu sentido e garantam sua legibilidade.

Mas não é diferente com a fotografia digital, uma vez que não há em seus pixels o mesmo peso de “inscrição física” que era produzida sobre os grãos de prata?

Imagine que esse herói de guerra não tenha levado um tiro. Mas ele foi capturado pelo inimigo e feito prisioneiro. Sofreu todo tipo de tortura psicológica, foi humilhado, abusado, dormia e comia em condições sub-humanas. Liberto, ele retorna para casa com todos os traumas que uma guerra pode causar, mas sem nenhuma cicatriz inscrita no corpo. Para quem o ouve, a guerra é apenas uma informação que ele traduz em imagens. Será que por isso seu testemunho é menos legítimo? Se acreditamos que ele esteve na guerra, seu relato pode ser tão intenso quanto a impressão gerada por uma cicatriz. Seu trauma faz de toda sua existência uma cicatriz. Claro, seu relato e seus sintomas podem ser forjados. Mas também a cicatriz da cirurgia de apêndice também poderia se fazer passar por uma marca de guerra.

A fotografia ainda serve à comunicação e à memória não apesar de seus códigos, mas exatamente por meio deles. Estão previstos esses códigos as condições de credibilidade que permitirão que tal imagem ganhe a legitimidade de um testemunho.

 

Onde está a revolução digital?

A fotografia digital produziu sim sua revolução, mas não exatamente onde esperávamos: o acesso à produção de imagens e seu poder de circulação são, de fato, a grande novidade. Nesse sentido, o iPhone é mais importante que a Nikon, e o Flickr é mais importante que o Getty Images. Aqui está o desdobramento mais impactante da fotografia digital: hoje, todos fotografam com seus celulares e todas as imagens produzidas atravessam o planeta de modo informal pelas redes. É notável como o Getty Images se rendeu às imagens amadoras do Flickr (“a vida como ela acontece”, diz o site), e como a sagrada Nikon trabalhou rápido para permitir que suas câmeras coubessem no “bolso” das massas, em todos os sentidos (e não será estranho se, em breve, essas pequenas Nikon fizerem também ligações, do mesmo modo que o telefone N90 da Nokia já faz fotos com as legendárias lentes Carl Zeiss).

Ou seja, a verdadeira revolução da fotografia digital não foi operada pela indústria fotográfica ou pelos fotógrafos profissionais, mesmo que estes tenham sido os primeiros a debatê-la e a tentar geri-la. Talvez essa surpresa tenha ocorrido exatamente porque todo o planejamento e todas as previsões visavam, no fundo, à preservação de um espaço conquistado. Tratava-se, portanto, de uma posição conservadora, avessa a qualquer possibilidade de revolução.

O problema mais importante que se coloca para a comunicação e para a memória não é o fato de que essas imagens são produzidas, armazenadas e veiculadas sob uma codificação técnica totalmente diferente. Também não é o fato de que estão sujeitas à manipulação. As notícias, os registros científicos, os álbuns familiares continuam existindo, com a mesma promessa de dar conta de relatar os fatos, de transmitir conhecimentos e de garantir nossa memória. O problema que essa nova situação desencadeia é: as imagens estão mais disponíveis do que nunca mas, diante de tal proliferação, nunca olhamos tão pouco para nossas fotografias. Quais as formas de lidar com essa nova escala de produção e circulação de imagens?

Algumas intuições tem sido apontadas pelos artistas. Tratarei disso na continuação deste post, ainda nesta semana.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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