Sentimentos em torno da fotografia contemporânea

[28.jun.2011]

Esta é a primeira parte da apresentação que fiz na mesa “A Cena Cultural e a Fotografia Contemporânea”, ao lado de Geórgia Quintas e Pio Figueiroa, na programação do Seminário Nafoto, dia 18/06/11, na Caixa Cultural Sé, em S. Paulo.

Mesa "A cena cultural e a fotografia contemporânea". Fotos: Pedro Palhares.

Ser e sentir-se contemporâneo

Ernest Gombrich disse uma vez que a arte moderna demorou 50 anos para se tornar contemporânea. Isto significa que os olhares em torno dela precisaram desse tempo para reconhecê-la como uma arte do seu tempo presente. Com a fotografia contemporânea ocorreu algo semelhante, exatamente ao longo desses 20 anos representados pela exposição do Nafoto.

Tenho a impressão de que vivemos esse processo de três modos: houve uma fase de ansiedade, uma fase de negação e uma fase de liberdade. Não se trata aqui de reconstituir os fatos, mas mapear alguma representações que produzimos sobre a idéia de uma fotografia contemporânea.

Ansiedade

No início dos anos 90, intuíamos a chegada iminente de certa fotografia experimental, muito distinta da média de nossas práticas mais consagradas, e que começava demarcar sua presença nas galerias e bienais de arte pelo mundo. Foi curioso o modo como vivemos esse processo: falávamos em “fotografia contemporânea” como se fosse uma entidade metafísica e poderosa que estava por vir. Especulávamos muito, mas ninguém sabia descrevê-la com clareza.

Digo “metafísica” porque ela sempre nos parecia distante, seja no espaço, uma fotografia feita nos grandes centros (por isso, nesse período, temos falado muito em “internacionalização” da arte), seja no tempo, já que para nós existia como uma promessa. Portanto, ainda não sentíamos essa produção como contemporânea, por mais que levasse esse nome.

Pesa sobre isso o fato de que nós sempre tivemos uma formação purista, em dois sentidos, pelo menos. Primeiro, por uma espécie de ressentimento histórico: como os fotógrafos não foram reconhecidos como artistas, construíram então seu próprio espaço de afirmação, seus procedimentos estéticos exclusivos e uma história separada das outras artes. Por exemplo, quando começamos e nos deparar com tais experimentações, ainda se colocavam de modo veemente as mesmas cobranças que recaíram sob o pictorialismo: “mas isso é fotografia?”. Segundo que, na América Latina, a tradição documental e fotojornalística era bastante forte. Vivemos processos históricos duros de repressão política e degradação social, e toda experimentação parecia superficial diante da realidade que havia para denunciar. Tal purismo deu a essa promessa de fotografia um aspecto mais grandioso do que deveria, às vezes heróico, às vezes monstruoso.

Negação

Ocorreu que, ao longo dos anos 90, muitos fotógrafos se sentiram de fato estimulados à experimentação, em pelo menos duas direções: a ficcionalização e a hibridização de linguagens, iniciativas que se colocavam claramente em oposição à tradição documental e purista da fotografia. Apesar do ar de novidade dessa experiência, fotógrafos, curadores e pesquisadores começaram a descobrir e resgatar trabalhos que não necessariamente eram recentes, mas que permaneceram sem voz diante da hegemonia da fotojornalismo. Paralelamente a tudo isso, referências internacionais dessa nova fotografia começaram a circular cada vez mais em exposições no país.

Eis que ao longo dos anos 90, sentíamos que já tínhamos uma fotografia contemporânea. Mas nossa ansiedade não estava totalmente resolvida. Não bastava sentir sua proximidade, ainda precisávamos explicar, definir e descrever essa fotografia contemporânea, porque esse momento de renovação foi também marcado pela ampliação dos espaços de debate seja por meio dos eventos internacionais (Mês Internacional da Fotografia, Panoramas da Imagem), seja por meio dos novos espaços acadêmicos dedicados à fotografia.

Ainda com certa insegurança, afirmar uma fotografia contemporânea significou negar uma outra fotografia que parecia não sê-la. Como é natural em todo processo de transformação que ocorre com intensidade e rapidez, é preciso eleger um inimigo. Fazer fotografia contemporânea não era apenas abrir-se às experimentações, era também afastar-se da tradição da fotografia documental. Termos como objetividade, mimesis e realismo foram expulsos de nosso vocabulário. Também soava conservador fazer uma fotografia que parecesse apenas fotografia.

Assim, a fotografia contemporânea foi, durante essa década, uma experiência tensa, demasiadamente preocupada com sua auto-afirmação. Nesse sentido, as várias edições do Mês Internacionais da Fotografia tiveram  o mérito de trazer e estimular essa produção experimental, sem negligenciar a história e a tradição da fotografia.

Liberdade

Passado o furor dessa descoberta, o espaço para a experimentação parece ter se tornado definitivo. Não era mais preciso empunhar uma bandeira e colocar o dedo em riste contra a tradição para ser ficcional ou ser híbrido. Os espaços estavam conquistados. É nesse momento que podemos dizer que a fotografia contemporânea se tornou contemporânea. Ela não é uma promessa, tampouco soa como uma ação de “avant-guard” . Ela existe, e pertence a seu tempo.

Aqui existe um paradoxo curioso: a fotografia contemporânea era uma promessa libertária que nos chegou de modo tão tenso, que se desdobrou numa “obrigação de ser livre”: havia um universo de condições impostas a uma fotografia que quisesse ser chamada de contemporânea. Dissipada essa tensão, nos colocamos diante da “liberdade de ser livre”. Isso significa a liberdade de experimentar, mas também a liberdade de voltar a dialogar com a tradição.

Nessa nova condição de liberdade, os artistas podem se lançar a todo tipo transgressão, mas também fazer uma fotografia que seja apenas fotografia, e retomar conceitos que pareciam arcaicos. Mesmo uma fotografia híbrida e experimental tem aí a oportunidade de reassumir seu interesse pela realidade e pela memória.

Outro paradoxo: a fotografia contemporânea se torna verdadeiramente contemporânea quando ela deixa de se perguntar se é ou não contemporânea. Isso significa que finalmente o termo se tornou, senão natural, pelo menos mais confortável. Ela é a fotografia do presente. Essa fase de liberdade representa, portanto, uma fase de sincronização (do contemporâneo consigo mesmo).

Tudo pode ser feito em termos de técnicas, de procedimentos, de linguagem. Apenas um dado é irrevogável: a consciência desse tempo presente, e de algumas de suas conquistas. Não é mais cabível mistificar o meio, desconhecer seu sentido cultural, seu modo de funcionamento. Uma fotografia pode voltar a ser documental, pode abordar a realidade e a memória, mas deve estar ciente da intervenção gerada pelo dispositivo. Entenda-se como dispositivo não apenas o aparelho, mas os comportamentos e os rituais que ele gera, as dinâmicas de seu mercado, as formas de diálogo com outras linguagens, seus meios de difusão, suas formas de recepção. Portanto, a fotografia contemporânea não é um tipo de imagem, mas uma postura que se pode ter diante de qualquer imagem.

***

Neste sábado, dia 02/07/2011, o Nafoto lança o Catálogo Raisonné 20 Anos Nafoto, com informações sobre as exposições e atividades realizadas pelo grupo, dentre elas, as oito edições do Mês Internacional da Fotografia. A distribuição será gratuita: Caixa Cultural Sé, Praça da Sé, 111 – Centro – São Paulo.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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