O portfólio é um instrumento que agencia muita coisa na carreira de um artista. Mas ele é instrumento, não é obra. Fotógrafos, em particular, são muito apegados a esse modelo de apresentação de seus trabalhos e correm às vezes o risco de tomá-lo como objetivo mesmo de sua produção. Além disso, pesa sobre o portfólio uma tradição que pensa a fotografia como uma arte de grandes tomadas, de momentos únicos, de boas composições, de imagens que se bastam, obras para serem contempladas em silêncio, isoladas num espaço próprio demarcado pelo passepartout.
Por sua vez, as leituras de portfólio têm sido para os artistas um lugar fundamental de diálogo que tanto colabora com o desenvolvimento de seus trabalhos, quanto cria oportunidades de escoar sua produção. Mas esse formato de interlocução, também muito explorado nos eventos de fotografia, nem sempre aproveita todo o potencial do encontro entre artistas e críticos, sobretudo porque convida a apresentar resultados mais ou menos acabados ou, pelo menos, um recorte muito estático da produção.
É verdade que artistas e críticos podem ser melhores do que os velhos hábitos que essa denominação convoca. Em todo caso, é importante tomar consciência do quanto um vocabulário pode ancorar uma dinâmica numa tradição que merece ser superada. O portfólio é utilitário, um meio a que o artista recorre para mostrar um panorama ou um recorte de sua produção. Nos tempos em que ainda havia emprego para fotógrafos, levávamos nossos portfólios aos editores, mostrando um apanhado de tudo o que sabíamos fazer. Hoje, ele ainda serve para que o artista se apresente a um curador ou galerista, para que participe de um processo seletivo, para que venda um projeto. O portfólio é, então, esse momento intermediário entre uma competência demonstrada e uma próxima realização. Mas ele é insuficiente como obra.
Como já sugeri, o problema existe quando o fotógrafo se contenta em ter como meta a produção de um bom portfólio. Nesse caso, a leitura de portfólio tem algo de tautológico: serve apenas para melhorar o portfólio! Esse mostruário neutro e idealizado é sintoma do pensamento que toma a imagem como entidade autônoma, pura, um pouco sagrada, um pouco metafísica, que quase independe de um modo de materialização. Ele é a versão bidimensional do cubo branco.
Consequência disso é que muitos fotógrafos conseguem investir na produção de boas imagens, mas não na dinâmica efetiva que elas podem criar num espaço, diante de uma performance do olhar: uma montagem, uma projeção, uma intervenção num ambiente, um objeto, um livro de artista. Essas seriam apenas formas incidentais de encarnação de suas imagens, que são boas o bastante independentemente de como são mostradas.
O desejo de construir um portfólio bem resolvido e acabado também dificulta pensar no trabalho como processo. Sob a perspectiva dessa tradição, o que resta de processual a discutir é a possibilidade de um melhor tratamento, uma melhor impressão e uma melhor “edição”, aqui entendida como boa sequência de imagens.
Um portfólio fechado dá ao crítico que faz a leitura um lugar igualmente estático. Ele se senta em sua mesa portando apenas seu olhar atento e suas convicções, aguardando um artista que chega um tanto tímido e respeitoso, senta-se à sua frente, apresenta-se, abre suas imagens, e aguarda com uma postura solene que o crítico apresente seu veredito. Afinal, crítica é julgamento. Esta é uma noção um tanto rançosa de crítica de arte, em que o artista exibe seu trabalho e o crítico, falando de certa distância (e de certa estatura), decide se oferece ou não sua legitimação, como uma espécie de benção.
A interação entre críticos e artistas sempre existiu, mas ganha mais recentemente estratégias mais pontuais e transparentes por meio de grupos de estudo e de acompanhamentos de projetos. Demonstração disso, é a consolidação da noção de “crítica de processo” (que, aqui no Brasil, tem sido difundida pelas pesquisas da professora Cecília Salles). Isso tem levado muitas vezes o crítico ao ateliê do artista e permite diálogos de duração mais longa e produtiva. Isso perturba de modo muito saudável tanto o silêncio do espaço de criação e quanto a autoridade da crítica.
É difícil reproduzir essas condições no pequeno espaço e tempo restritos das leituras de portfólio. Mas cabem alguns esforços: assumir a leitura como intervenção num processo; dar ao artista a liberdade de levar trabalhos menos acabados – quem sabe, apenas começados, na forma de esboços, de ideias, de textos – e, em contrapartida, mais contextualizados em sua trajetória; dar ao crítico oportunidade de ter previamente informações sobre o trabalho que verá, e permitir que ele contribua mais com perguntas e referências que se assumem como provisórias, e menos com vereditos. Tudo isso pode libertar a noção de portfólio dos vícios de sua tradição.
Nos espaços acadêmicos de formação em artes, a preocupação de pensar a obra dentro de um processo e de um contexto já se faz refletir num jargão próprio: reconhecemos esse lugar de origem quando o artista apresenta seu trabalho falando em “minha pesquisa…”.
Assim como um termo arcaico não implica uma prática problemática, uma palavra sofisticada não salva uma produção ou um pensamento da superficialidade. Não basta trocar a expressão “meu portfólio” por “meu processo” ou “minha pesquisa”. Mas a escolha do vocabulário esconde uma preocupação interessante: a ideia de pesquisa sugere a existência de problemas ou questões que atravessam as diferentes produções de um artista, e têm o mérito de permitir enxergar um processo mais amplo, mesmo quando envolve obras acabadas e projetos concluídos.
Nos eventos de fotografia, as leituras de portfólio parecem constituir solução democrática, porque permitem colocar um grande número de participantes em interação com os convidados mais ilustres. Mas, olhando de longe, esse atendimento em massa, organizado e eficaz, cria em alguns grandes festivais cenários que parecem o de uma repartição pública, do tipo “Poupa-Tempo”. Olhando de perto, a autoridade dos leitores e o tempo disponível resultam numa espécie atividade mística, em que as imagens podem ser lidas com uma sabedoria esotérica, como cartas de tarô que permitem dizer sobre o futuro de um artista.
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PS.: Achei que não seria ocasião de entrar aqui na noção de “leitura”, termo que é evidentemente tomado de empréstimo da linguagem verbal, mas que já tem uma boa acomodação no campo das imagens (ver, por exemplo, Leituras sem palavras, de Lucrécia D’Alessio Ferrara, Lendo imagens, de Alberto Manguel e, ainda, um interessante debate no blog Sete Fotografia. Por enquanto, podemos assumir sem muitos traumas certo uso metafórico dessa expressão. Mas também vale a discussão futuramente.
PS2.: A primeira parte desta série, dedicada à noção de “ensaio autoral”, pode se acessada aqui.
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