A paisagem em grande formato*

[30.ago.2014]

Massimo Vitali, Florencia, 2010

Massimo Vitali, Florencia, 2010

Uma medida para o debate sobre o grande formato

O grande formato na fotografia é um fenômeno, não propriamente uma questão. É fenômeno no sentido de ser algo que aparece, que se manifesta, que é perceptível na produção das últimas décadas: notamos a recorrência de imagens de grandes dimensões e, na média, um visível aumento na escala das obras mostradas nas feiras e galerias de arte. Não é uma questão porque não parece haver nesse processo uma busca ou uma pergunta configurada de modo minimamente uniforme, não é algo que possa ser interpretado por si mesmo. Ou seja, não há uma linguagem do grande formato.

A opção pelo grande formato não é esteticamente irrelevante, ele dá à imagem qualidades às quais o olhar não permanece indiferente. Cabe perguntar que efeitos produz e como o artista se apropria deles, mas sempre no contexto de um dado projeto ou, às vezes, de uma certa imagem. Opções como projetar ou imprimir a imagem, exibir na parede ou fora dela, com ou sem moldura, em pequeno ou grande formato, tudo isso é parte de um universo de disponibilidades a que o artista recorre, sem que isso represente necessariamente o engajamento a uma tendência ou sequer a um conceito. É verdade que, em alguns tantos casos, pode-se optar por esse resultado por uma espécie de inércia, de movimento tautológico: um artista amplia a escala de suas imagens simplesmente porque a escala das imagens tem sido ampliada. Ainda assim, ou sobretudo nesses casos, o incremento das medidas não é algo interpretável. Para efeito de julgamento, podemos questionar se há na escolha do grande formato coerência ou incoerência, se resulta orgânico ou forçado. Mas não cabe perguntar de modo generalista o que o grande formato “quer dizer”.

O grande formato é, pela sua própria condição, um fenômeno muito visível, não há como não percebê-lo. Não deve ser ignorado, ao contrário, merece ser debatido em sua semi-significância. Ele é, antes de tudo, efeito colateral de inquietações mais importantes que ele próprio. A afirmação da fotografia nos espaços dedicados à arte é uma dessas inquietações. O modo simplista de colocar esse fato é: os artistas ampliam o formato das imagens para entrar no mercado da arte. Não que isso não ocorra, mas há um recorte mais interessante para esta discussão: por meio do grande formato, os artistas se colocam, com o corpo de suas obras, num embate com as formas de circulação, exposição e visualização das imagens no mundo da arte.

 

Embates com a aura

Walter Benjamin compreendeu muito bem o que havia de novo nessa imagem que se multiplica, que congela o movimento e que muda a escala das coisas: “a natureza que fala ao olhar não é a mesma que fala à câmera” (Pequena história da fotografia). De um lado, a fotografia tem a mesma capacidade da magia de revelar o invisível, mostrando sutilezas de um movimento que o olho não percebe ou ampliando formas do mundo microscópico. De outro, tem o poder de desmistificar e reduzir objetos de proporção monumental que, antes, não cabiam inteiros no enquadramento do olhar humano. Há um sentido histórico nesse modo de se apropriar das coisas através de uma imagem de pequeno tamanho e de grande circulação. Por isso, para Benjamin, mostrar a arte na forma de fotografia era algo muito mais relevante do que querer elevar a fotografia à condição de arte.

Sessenta anos depois, o crítico francês Jean-François Chevrier fala da assimilação de uma forme tableau (forma quadro) por uma fotografia que conquista seu lugar nas galerias e museus de arte. O conceito aparece pela primeira vez no texto feito para a exposição Uma outra objetividade e é retomado em vários artigos posteriores (Une autre objectivité, Centre national d’Arts Plastiques, Paris, 1989, curadoria de Chevrier e James Lingwood, participação de Robert Adams, Bernd et Hilla Becher, Hannah Collins, John Coplans, Günther Förg, Jean Louis Garnell, Craigie Horsfield, Suzanne Lafont, Thomas Struth, Patrick Tosani, Jeff Wall).

Chevrier lembra que a tradição da fotografia assumia a página impressa – do livro, do jornal, do cartaz – como um lugar que lhe era próprio. E mesmo quando ia à parede, não se assumia plena e confortavelmente como “quadro”. Eu acrescentaria: em suas ambições artísticas, a fotografia assimilou como nenhuma outra arte o “portfólio” como lugar final de exibição. Raramente os fotógrafos de uma geração se perguntavam sobre os modos como uma imagem poderia se materializar diante do olhar. Um trabalho era considerado resolvido quando alcançava uma boa impressão e uma boa edição, dentro de uma pasta que os fotógrafos carregavam com orgulho debaixo do braço.

Chevrier notou que o grande formato poderia ser um dos resultados de um processo amplo que permitia à fotografia se pensar como imagem feita para ser exposta, para ocupar a parede do museu. Essa “outra objetividade” de que ele fala tem pouco a ver com uma noção coloquial de objetividade, com a busca de uma “descrição verdadeira”. Entre outras coisas, pode ser relacionada com essa “objetualidade” que a fotografia assimila: a imagem adquire uma tal dimensão, um tal peso, uma tal forma de inserção no espaço expositivo que pressupõe o olhar de espectador em pé deslocando-se diante dela. A noção de “forme tableau” tem ainda hoje grande importância nas análises que Chevrier faz da arte moderna e contemporânea. Mas ele se irrita quando seus interlocutores dão demasiada ênfase ao grande formato para definir esse conceito. Esse é apenas um e não necessariamente o mais importe dos efeitos daquilo que a fotografia contemporânea reivindica.

Vale dizer ainda que essa mesma consciência que a fotografia assume de sua condição de objeto de exposição pode muito bem se manifestar pela escolha de formatos minúsculos, ou pela alternância de escala, pelo uso de outros recursos expositivos que não a parede, e mesmo por projetos de livros experimentais (que são também pensados muitas vezes como objetos, num sentido quase escultórico).

Colocando Benjamin e Chevrier em perspectiva, podemos identificar no grande formato um dos modos como a arte contemporânea – não apenas a fotografia – se debate com a questão da destruição ou da sobrevivência da aura: objetos e temas banais, referências da cultura de massa, a fotografia em seu caráter mais documental, e mesmo uma fotografia de aparência amadora, tudo isso é assimilado pelo espaço auratizado da galeria e do museu. O grande formato, a numeração dos prints, o uso de certos suportes ou molduras, os certificados emitidos pelas galerias, todos esses são elementos pelos quais a fotografia se insere – nada ingenuamente – nos rituais e os templos da arte contemporânea.  Mesmo a “arte como fotografia” de que falava Benjamin foi elevada a condição de arte: basta pensar como os registros de performances e intervenções em paisagens ganham o estatuto de obras – com o devido valor mercadológico – a partir dos anos 1970.

As contradições que permitem buscar a aura em gestos que pareciam destruí-la são uma questão chave da arte contemporânea, abertamente discutida pelos artistas. O grande formato deve, antes de tudo, ser penado dentro de cada projeto, mas pode ser emprestado aos discursos, sejam do artista, sejam da crítica, como um elemento retórico desse debate.

 

Descontrução da ilusão

Na tradição da pintura de paisagem (sobretudo nas vistas holandesas e nas vedute venezianas dos séculos XVII e XVIII), o grande formato parece reforçar o efeito de imersão, na medida em que retira do campo de visão do espectador as bordas da tela e tudo o que está fora dela. As grandes fotografias panorâmicas, quase sempre dedicadas à paisagem (natural ou urbana), às vezes montadas na forma de dioramas, visavam o mesmo efeito. Mas seria precipitado estender essa justificativa à paisagem fotográfica contemporânea de grande formato. Ela se insere num contexto em que a noção de realismo e os artifícios ilusionistas foram amplamente desconstruídos. Não se retorna a eles ingenuamente, mesmo quando se trata de uma fotografia de caráter documental, com tomada frontal, foco preciso e definição impecável.

O aumento da escala e a precisão da imagem parecem constituir um recurso hiper-realista que, ao superexpor as condições necessárias à ilusão, acaba por problematizá-la. Mesmo na pintura, recorremos à noção de hiper-realismo quando há algum tipo de surpresa gerada pelo excesso de visibilidade: quando tudo é perfeitamente iluminado, quando todas as marcas de expressão de um rosto são ativadas, quando todos os personagens estão dotados de uma gestualidade, quando toda a paleta de cores é convocada etc. Na fotografia de grande escala, muitos dos artifícios produtores de realismo são também evidenciados em demasia. E, se geram surpresa (se dizemos algo como “nossa, é muito perfeito!”), mais do que imersão, o que proporcionam é a alguma consciência da representação, resultando num misto de familiaridade e estranhamento.

Claudia Jaguaribe, série Rio de Janeiro, 2010

Claudia Jaguaribe, série Rio de Janeiro, 2010

Jose Manuel Ballester, São Paulo 1, série Noturno, 2010

Jose Manuel Ballester, São Paulo 1, série Noturno, 2010

Madalena Schwartz, Vista noturna da cidade, 1982

Madalena Schwartz, Vista noturna da cidade, 1982

Há um excesso de camadas nas paisagens cariocas de Cláudia Jaguaribe. Quem conhece o Rio, cedo ou tarde, percebe a intervenção da montagem feita pela artista. Mas, mesmo sem qualquer montagem, há igualmente excesso de camadas na paisagem paulista de Jose Manuel Ballester ou de Madalena Schwartz. Aquilo que é São Paulo está demasiadamente visível: temos ali a surpresa de reconhecer aquilo que sabemos e dizemos sobre essa cidade, mas que raramente vemos. Nos três casos, o ponto de vista é também improvável, oferece elementos conhecidos, mas não reproduz a experiência cotidiana que temos com essas paisagens. No debate, Nelson Brissac discutiu o modo como grande formato, emalguns casos, responde às transformações da paisagem urbana das grandes cidades que estrangula o olhar ao tirar dele o horizonte e as referências dos monumentos que pemitiriam sua orientação por esse espaço.

Caio Reisewitz, Guanabara VIII, 2012

Caio Reisewitz, Guanabara VIII, 2012

O modo artifical como a natureza se apresenta a nós hoje é uma questão recorrente nos trabalhos de Caio Reisewitz. Em trabalhos anteriores, o gramado muito bem cuidado de um campo de golf ou o modo como os parques e reservas são pensados como respiro de uma paisagem dedicada prioritariamente aos edifícios. Nestas imagens, a natureza se confronta com outro tipo de intervenção: o excesso de composição. Esse é exatamente um dos artifícios que fizeram a fotografia de paisagem ser bem assimilada pelos olhares habituados à pintura. Mas, agora, o modo como a fotografia força o encaixe entre os elementos da paisagem quase dói nos olhos e, assim, denuncia sua artificialidade.

Massimo Vitali, Porto Miggiano Vertical, 2013

Massimo Vitali, Porto Miggiano Vertical, 2013

Essa combinação entre familiaridade e estranhamento são ainda mais evidentes nas imagens de Massimo Vitali, porque suas paisagens são mais corriqueiras, já suficientemente ocupadas pelo homem e, portanto, decifradas pelo olhar. Na banalidade dessas situações de lazer, a vida real parece por si mesma um grande teatro, uma grande composição, como nos velhos jogos de forte apache, com suas miniaturas de índios e soldados. Não há grande diferença no que vemos aqui e naquilo que encontraríamos, por exemplo, numa foto encenada de Jeff Wall.

 

Deslocamento do sublime

Lucas Lenci, Cataratas 2, 2013

Caio Reisewitz,Iguaçu XII, 2011

Caio Reisewitz,Iguaçu XII, 2011

Elena Damiani #2, série Crystal, 2013

Elena Damiani #2, série Crystal, 2013

Claudia Jaguaribe, série Carbon Blues #3, 2014

Claudia Jaguaribe, série Carbon Blues #3, 2014

Na pintura, a força da água foi uma forma recorrente de expressão do sentimento do sublime, que confronta o poder e a extensa temporalidade da natureza com a fragilidade e a transitoriedade do homem que a observa. Mas nas cataratas que vemos em Elena Damiani, Caio Reisewitz ou Lucas Lenci, assim como nas geleiras de Claudia Jaguaribe, identifico algo muito distinto. Por mais grandiosa que seja, a natureza aparece nessas imagens já bastante conformada à condição de objeto devidamente dominado pelas técnicas que servem à visão, sejam os artifícios que servem ao enquadramento da imagem, sejam as passarelas que permitem contemplar a natureza sem intimidação.

O grande formato e a alta resolução são aqui convenientes porque, se não permitem competir com a natureza em tamanho, pelo menos, permitem representá-la em todas as suas minúcias. Não há mais segredos nessa natureza: por um acerto de escala e pelo domínio dos códigos de representação, ela passa a caber no olhar humano. A grandiosidade que agora surpreende é a da própria imagem.

Massimo Vitali, Les catedrales, 2011

Massimo Vitali, Les catedrales, 2011

Esse deslocamento do sentimento do sublime é ainda mais radical em Massimo Vitali. Como nos casos anteriores, seu enquadramento não se intimida diante da extensão do mundo que mostra. Reduzido à condição utilitária de espaço de lazer, a natureza se esvazia completamente de qualquer espírito romântico. Mas, agora, é diante da fotografia e não da natureza que o homem se revela pequeno e frágil, como num jogo bonequinhos que uma criança manipula conforme sua vontade. Não é de hoje que que a técnica absorve o sentimento do sublime que antes se projetava sobre a natureza. É ela que agora deslumbra o homem. Investida de uma ideia de onipotência, o homem se aparta da técnica e a concebe como força grandiosa, misteriosa e, por vezes, ameaçadora. Nós vemos expulsos da técnica do mesmo modo que fomos expulsos do paraíso. A imersão produzida pelas grandes paisagens é também ressignificada. Diante delas, não temos mais a ilusão de estar envoltos pela própria natureza. Mas nos descobrimos personagens absorvidos pelas narrativas e pelos espetáculos criados pelas imagens.

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[* texto escrito a partir das imagens propostas para debate no ciclo “Imaginar é Preciso”, produzido pela Revista seLecT, idealizado por Giselle Beiguelman e Paula Alzugaray, dentro da programação do SP-Arte/Foto 2014. Participaram comigo do debate sobre “A paisagem em grande formato” o filósofo Nelson Brissac Peixoto e a artista Claudia Jaguaribe]

 

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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