Este texto foi escrito em 2013 e nunca chegou a ser publicado. A imagem que discuto se perdeu e não tenho nenhuma memória dela. Lancei então nas redes um convite: Procura-se uma obra para uma crítica órfã. Dei apenas algumas pistas de como o texto parecia imaginar essa fotografia que lhe faltava: 1. Tem que ser fotografia de paisagem; 2. Tem que ser escura, de preferência, bem escura; 3. O horizonte tem que ser difuso, isto é, o céu e a terra (ou rio, lago, mar…) têm que se confundir um com outro; 4. O autor tem que estar em paz com a ideia de que seu trabalho, mesmo que conceitual, possa evocar um olhar contemplativo. Recebi imagens de 30 autores. A partir delas, fiz pequenos ajustes no que havia escrito, explorando o modo como as fotografias imaginaram o texto.
PAISAGENS
Depois de ter rompido com dogmas e reinventado suas formas, depois de ter dialogado intensamente com outras linguagens e de haver se desmaterializado em experiências conceituais, a fotografia se torna mais livre do que nunca. Livre também para existir simplesmente como imagem fotográfica, para se deixar contemplar quando assim o olhar desejar, para assumir aquilo que reencontrou da tradição enquanto procurava seu futuro.
Uma imagem como esta pode parecer um tanto romântica para uma geração de artistas que tantas vezes desestabilizou as referências mais seguras que tínhamos para lidar com a fotografia. Não é de imediato que se compreende o exercício de tal liberdade que ainda permite a transgressão, mas que não mais obriga a ela. Dito de outro modo, os artistas foram muitas vezes movidos pela “obrigação de se libertar”. Mais seguros de suas conquistas, eles se dão agora a “liberdade de ser livres”, o que pressupõe a liberdade de manter-se dentro de alguma tradição, quando assim se queira.
No final das contas, o que esta paisagem sugere não é um recuo nostálgico. Trata-se antes de encontrar nas “dobras do contemporâneo” potenciais que sempre moveram as imagens, mas que a ansiedade da ruptura muitas vezes não permitiu enxergar. Nesta foto, em particular, encontro a metáfora de um despojamento conquistado que permite religar o que a fotografia construiu enquanto avançava no tempo e aquilo que ela redescobre em sua própria história como virtualidade.
Talvez, toda paisagem queira operar uma religação. Como diz Anne Cauquelin, “a pintura não dá a ver objetos, mas o elo entre eles, como se tentasse também tecer um vínculo incorruptível entre o que se sabe e o que se vê. (…) Paisagem, ligação original, que reconcilia dois mundos preservando sua relativa independência. Dessa conjugação nasce a pintura, terceiro mundo. (…) o que se vê não são as coisas, isoladas, mas o elo entre elas, ou seja, uma paisagem” (A invenção da paisagem, 2007).
Quando a fotografia surgiu, a pintura romântica parecia executar muito bem essa tarefa: nela estavam muito bem combinadas todas as forças representadas pelo céu e pela terra. Por sua vez, a fotografia não podia esconder sua condição mundana e respondia mal à tarefa de harmonizar os elementos da cena. Como não lidava bem com regiões de luz muito distintas, era preciso estabelecer prioridades e decidir o que seria sacrificado. Com um céu sempre vazio e projeções de sombra muito duras, ela era criticada por sua suposta incapacidade de idealizar a natureza, conciliando matéria e espiritualidade.
A fotografia não tardou a descobrir artifícios que respondiam a esse problema. A solução dada por Gustave Le Gray, um dos grandes fotógrafos de paisagem do século XIX, era combinar numa montagem duas tomadas distintas da mesma cena, uma calibrada para as altas luzes do céu, outra para as luzes médias refletidas pelas formas terrenas.
Já nesta imagem, encontramos uma resposta muito distinta: o horizonte quase se dissolve, o céu e a terra se confundem e tornam-se espaços intercambiáveis. Vemos alguns dos elementos fundamentais da paisagem, mas aqui eles resistem a representar a natureza como racionalidade suprema. Eles se fundem sem uma hierarquia clara.
Nossos mitos de criação sugerem que foi preciso separar o céu e a terra, depois, separar a luz das trevas (Gênesis, 1:1-4) para constituir essa ordem que a arte sempre desejou tornar visível. Quando esses elementos aparecem sobrepostos nesta fotografia, não se retorna simplesmente ao caos. Ao contrário, revela-se uma cosmologia, a visão de uma paisagem ainda mais ampla que permite considerar algo que foi recalcado na interpretação que fazemos desses mitos: a escuridão.
Recuperar as potências que atuaram nessa origem é algo que permite também apreender o presente em sua complexidade. Em sua célebre conferência “O que é contemporâneo” (2009), Agamben nos diz: “contemporâneo é aquele que mantém o olhar fixo no seu tempo, para perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para aqueles que deles experimentam a contemporaneidade, obscuros”.
Ao longo de suas teses, Agamben propõe dois modos como o escuro pode ser pensado: 1. Aquilo que chamamos de escuro não equivale a inatividade do olhar, mas é um efeito produzido pela ausência da luz sobre um tipo de célula retiniana chamada off-cell. Portanto, o escuro não é a parte da realidade que não alcança os sentidos. É, ao contrário, um tipo de sensibilidade, uma atividade efetiva do olhar; 2. Quando olhamos para o céu, vemos pontos luminosos que, num espaço escuro, se projeta em nossa direção. Mas, considerando que o universo se expande em grande velocidade, esse escuro pode ser o efeito de uma luz que viaja num espaço que se afasta de nós. É portanto algo que vem em nossa direção e que nunca nos alcança.
Há aqui duas metáforas poderosas: 1. para que um fenômeno ganhe contorno, é preciso muitas vezes demarcar antagonismos, apontar aquilo à que se opõe para, logo em seguida, reduzir esse fenômeno antagônico à condição de fundo que dá contraste aquilo que nos interessa destacar. Fato é que esse avesso não equivale ao nada, é algo que segue sorrateiramente participando de nossa experiência. 2. o presente é formado também por forças que estão muito próximas, que foram lançadas em nossa direção desde uma origem, mas que não nos toca diretamente porque uma expectativa de progresso nos empurra na direção contrária.
A partir dessas ponderações, temos a oportunidade de destacar aspectos que constituem nossa relação com a imagem, e que precisaram ser renegadas para que pudéssemos construir uma noção de fotografia contemporânea. Potências que estão bem representadas pelo que há de escuro nesta imagem; por aquilo que, sob certa perspectiva, pode ser entendido como recuo, como lapso do contemporâneo, mas que segue próximo e atuante na definição desse tempo. Esta imagem nos insinua três aspectos obscuros e constituintes do contemporâneo:
1. REALIDADE
Desde o século XIX, a fotografia foi exaltada por sua suposta capacidade de reproduzir a realidade visível. Essa compreensão ingênua que lhe serviu de propaganda, tornou-se também o seu fardo. Respondendo a isso, a fotografia contemporânea fez um claro esforço para livrar-se desse peso do real. Para tanto, convidou a pensar suas imagens como ficção ou, ainda, denunciou a usurpação da realidade pelos simulacros que ela própria ajudava a forjar. Essa bandeira motivou um universo de debates e experimentações que se revelou bastante produtivo, necessário à formação de um pensamento crítico quanto aos papéis culturais das imagens. Essa luz lançada sobre a fotografia pelas teorias e poéticas contemporâneas permitiu ver o quanto a fotografia construía uma realidade paralela, mesmo quando pretendia apenas duplicar as aparências exteriores. Mas a ênfase nos artifícios da imagem deixou à sombra o mundo que permanece existindo fora de sua linguagem e se oferecendo à representação.
Se pudermos enxergar o escuro da fotografia contemporânea, encontraremos a possibilidade de reconciliar a imagem e o mundo fora dela, sem nenhum prejuízo da consciência de todos os artifícios que foram trazidos à luz pelas teorias e pelas experimentações. A imagem pode resultar em algo muito distinto da realidade e, ainda assim, tocá-la intensamente. Não se deve confundir fidelidade e valor de testemunho, não se deve confundir reprodução e produção de verossimilhança. O testemunho depende sempre de uma faculdade totalmente permeável ao imaginário: a memória. A verossimilhança nunca é um atributo tomado diretamente da realidade, mas uma coerência que essa realidade paralela construída pela representação pode alcançar, e que permite fazer dela uma metáfora para a compreensão do mundo. A ficção pode assumir-se como invenção e, ainda assim, ser um instrumento poderoso de compreensão da realidade fora da imagem, como já demonstraram a literatura e o cinema. Uma paisagem precisa às vezes ser manipulada, processada, reconstruída para dar conta de representar a relação que estabelecemos com ela. A ficção não nega necessariamente a realidade, ela a escava.
2. CONTEMPLAÇÃO
A dimensão conceitual que a arte assume hoje constitui, muitas vezes, uma bandeira contra a contemplação. De um lado, temos a obra de arte tradicional diante de um olhar passivo que se abandona à ilusão produzida pela imagem. De outro, a obra contemporânea que exige interação e que se desmaterializa na prioridade do debate teórico que demanda.
É preciso recolocar um sentido perdido da noção de contemplação. Os pensadores antigos entendiam que era missão do filósofo dedicar-se a uma “vida contemplativa”, condição que, entre os gregos, era definida pela palavra theorien. Contemplar era olhar para o mundo de modo desinteressado, mas com atenção aguçada e capacidade intelectual plenamente ativada. Parece ter havido um tempo em que olhar e pensar estavam contidos nessa tarefa filosófica (ainda que a própria filosofia clássica tenha fraturado essa unidade).
A palavra contemplação como a conhecemos tem origem no latim templum. Na cultura cristã, esse é o lugar de reconexão entre a terra e o céu, entre o homem e Deus. Mesmo antes disso, numa Roma pagã, esse já era um espaço demarcado como sagrado. A partir dele, os movimentos observados na paisagem – das folhas, das árvores, das nuvens, dos pássaros – constituíam uma espécie de oráculo e ofereciam uma visão do futuro. Esse lugar que permite ler no céu o destino da terra, religa também o olhar com uma dimensão invisível da realidade.
A fotografia, acusada de emular um olhar passivo e mecânico diante da natureza, tentou definir-se como contemporânea esforçando-se para ser reconhecida como obra conceitual, cobrando também do público uma postura mais racional, a consciência dos códigos, dos procedimentos técnicos e dos artifícios estéticos, impondo algo mais do que a fruição da imagem propriamente dita.
A luz da fotografia contemporânea põe em evidência o conceito. O escuro do contemporâneo que agora estamos em condições de enxergar expõe aquilo que foi amputado da ideia de contemplação: o pensamento contido no modo da fotografia existir como imagem e de se oferecer ao olhar. A fotografia é conceitual não quando renega o olhar, mas no próprio modo de gerir o olhar sobre o mundo e, em seguida, sobre a imagem. Uma paisagem é feita daquilo que a natureza oferece, mas também do percurso que nos leva até ela. A força da paisagem está também na distância que foi percorrida, ela não seria nada se já estivesse lá, ao alcance do olhar. De modo semelhante ao que fazemos quando buscamos entender o processo e as razões de uma obra conceitual, a contemplação exige desmaterializar sua superfície da imagem para recompor ou reinventar o caminho que nos levaria até ela. Mesmo pronta, a imagem está totalmente lá.
3. ONTOLOGIA
O pensamento que chamamos de ontológico busca compreender o “ser” de cada coisa, suas qualidades necessárias e inalienáveis, aquilo que a distingue de outros entes. Boa parte das teorias sobre a fotografia, sobretudo aquelas de base semiótica, caracterizaram-se como teorias ontológicas na medida em que tentaram definir a especificidade dessa imagem, aquilo que a diferencia de outras formas de expressão.
Num momento em que a produção artística visava à transgressão de todas as fronteiras, os debates que insistiam na demarcação das especificidades soavam limitantes e conservadores. Esse esforço de interação entre linguagens artísticas foi sem dúvida bastante fértil. Permitiu que artistas formados em outras técnicas se apropriassem da fotografia, bem como estimulou a entrada dos fotógrafos nos espaços dedicados a manifestações mais abrangentes da arte.
A negação da abordagem ontológica pode ter sido necessária para superar o isolamento que muitas vezes foi imposto à fotografia e aos fotógrafos. Passado esse momento de tensão, talvez encontremos condições de resgatar o reconhecimento de certas especificidades – não exatamente uma essência – afirmadas pela história e pelos usos sociais das imagens. Desta vez, não se trata de demarcar e proteger um território que seja exclusivo, mas de reconhecer um lugar forjado pela tradição para, a partir dele, situar as possibilidades de interação com outras linguagens.
Para superar o desejo de dar ao ser uma forma – uma essência – eterna e imutável, como propôs a metafísica clássica, não é preciso renegar a ontologia. Ao contrário, podemos buscar no ser sua vocação para a mudança, um modo próprio de evadir-se de si mesmo sem anular-se, uma “ontologia do devir”, como sugeriu Gilles Deleuze (Diferença e Repetição, 2006).
A luz do contemporâneo convida à atravessar as fronteiras que distinguem as linguagens para dar à fotografia uma nova condição de liberdade. O escuro do contemporâneo ensina que o gesto de compreender algumas de suas especificidades podem, por si mesmos, operar essa transgressão.
É possível tornar a fotografia permeável a outros códigos sem ter de renegar as condições que lhe dão um lugar na história. É possível encaminhar-se na direção de muitas outras coisas ao ser apenas fotografia. De modo análogo, podemos identificar numa obra forjada pela linguagem da literatura, da pintura ou do vídeo algo que a história – não a metafísica – definiu como fotográfico. É por esse movimento que uma paisagem, gênero anterior à fotografia, pode soar tão fotográfica: não tanto porque a fotografia tenha encontrado em seu território uma paisagem que lhe fosse nativa, mas porque em suas perambulações, a fotografia soube cultivar terras estrangeiras para, em seguida, reivindicar um pertencimento, assim como um migrante que reivindica sua naturalização.
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