Todo corpo merece uma imagem

[07.out.2013]

Pacientes terminais, mulheres mastectomizadas, obesos mórbidos, mutilados, vítimas de violência sexual, corpos em decadência, sobreviventes de catástrofes, criminosos no corredor da morte são, dentre tantos outros, personagens que têm sido vistos em séries fotográficas que ganham grande repercussão, sobretudo pelas redes sociais. Aqui, uma antiga curiosidade do olhar é confrontada com o desejo de construir novas formas de abordagem pela retrato fotográfico.

Trata-se de algo difícil de discutir. Para começar, não é fácil definir que tipo de personagem é esse, exatamente porque a noção de “tipo” é quase sempre desastrosa para a compreensão do corpo e da cultura, na medida em que dissolve os sujeitos em aparências e comportamentos médios. Manter essa consciência é o desafio que temos quando a recorrência de certos projetos parecem compor em torno desses personagens uma temática da fotografia.

Thomas North, Irlanda, 1874

Thomas North, Irlanda, 1874

Começando pela história… O século XIX já teve provavelmente a impressão de que nada escapava à fotografia. Havia os momentos de buscar as belezas mais canônicas. Também, os momentos de aprofundar a iniciativa – já esboçada pela pintura e pela literatura – de fazer da realidade banal algo merecedor de uma representação elaborada. No século XX, com a difusão do instantâneo, esse olhar sobre o banal viria marcar a linguagem moderna da fotografia, numa perspectiva humanista: é com o instante que se resgata a singularidade do homem comum e anônimo.

Para além da grande e da pequena beleza, há algo que não escapou à fotografia do século XIX: o estranho, o feio, o grotesco, o obsceno, o marginal, o doente, o mal-formado, fatos e personagens mostrados em nome da ciência, do espetáculo ou, ainda, de uma combinação dessas duas coisas que a fotografia soube agenciar (como exemplo, o post Blanche: o monstro libidinoso). Mais do que qualquer outra arte, a fotografia buscou mostrar aquilo que o olhar deveria evitar e que, exatamente por dever evitar, passou a desejar um tanto perversamente.

É bem provável que o interesse por esses temas nunca tenha desaparecido. Mas, de um lado, imagens desse tipo tendem a ser banidas dos espaços mais públicos de entretenimento e difusão científica (como faziam o circo de aberrações e o gabinete de curiosidades). De outro, uma noção de arte fotográfica se estabelece reivindicando para a imagem uma força que está menos nas coisas que se colocam diante da câmera, e mais nos modos peculiares de mostrá-las.

Entre recalque e o sensacionalismo, há experiências que se destacam. Temos no trabalho de Diane Arbus, nos anos 60, um ponto de inflexão. Ali, reencontramos deficientes, pessoas deslocadas, feias, marginais, deficientes, casais improváveis, mostrados com uma naturalidade inimitável. Não se trata apenas de um estilo, de um modo de fotografar, mas de um modo de se inserir na diversidade humana. Não há em suas imagens pena, constrangimento, comoção, estranhamento ou desejo de chocar. O que surpreende é exatamente ver numa condição de normalidade esses sujeitos que supostamente exigiriam do olhar uma abordagem tão atípica quanto eles.

Diane Arbus, Jovem família do Brooklyn, 1966

Diane Arbus, Jovem família do Brooklyn, 1966

Vale lembrar ainda do trabalho de Joel-Peter Witkin que, nos anos 80, requisita pessoas mutiladas, doentes terminais e cadáveres para reencenar mitos e obras clássicas da história da arte. Trata-se de colocar numa perspectiva erudita a estética um tanto crua do circo de aberrações. Enquanto Arbus perturba por colocar seus personagens estranhos num lugar demasiadamente comum, Witkin faz o mesmo ao deslocá-los para um palco no qual se encenam as histórias mais idealizadas e arquetípicas. São experiências extremas, mas muito seguras de suas abordagens que constroem. Em contrapartida, diante desses personagens, qualquer meia-naturalidade ou qualquer meia-idealização se revela um tanto problemática.

Joel-Peter Witkin, Leda, 1986

Joel-Peter Witkin, Leda, 1986

 

Hoje, recebemos a cada semana pelas redes sociais a indicação de um ensaio que nos convoca a enfrentar algo que nossos olhares evitariam, aquilo que pareceria desrespeitoso expor ou mesmo fitar em demasia. De modo geral, seus autores sabem se desviar de qualquer tipo de dramatização fácil. Com uma abordagem discreta, às vezes sistemática, oferecendo uma troca direta de olhares, reconhecemos tanto a proximidade conquistada pelo fotógrafo quanto a consciência que os personagens têm do trabalho que está sendo feito. Em geral, evita-se também a presença de elementos retóricos como poses, cenários ou objetos que soem emblemáticos da situação que se mostra (a menos quando esses recursos caracterizam o lugar que se quer restituir ao personagem, como é o caso das fotos sensuais do projeto “Full Beauty”, abaixo). A preferência pela simplicidade da construção tende a ser, mais do que uma escolha estética, uma postura ética e crítica com relação ao excesso de apelo das imagens do passado.

David Jay, The Scar Project, 2011: http://www.thescarproject.org/

David Jay, The Scar Project, 2011: http://www.thescarproject.org/

Grace Brown, Project Unbreakable, 2013: http://project-unbreakable.org/

Grace Brown, Project Unbreakable, 2013: http://project-unbreakable.org/. O projeto traz vítimas de abuso sexual mostrando frases que ouviram dos estupradores (esquerda).

Yossi Loloi, Full Beauty Project, 2011: http://www.fullbeautyproject.com/

Yossi Loloi, Full Beauty Project, 2011: http://www.fullbeautyproject.com/

Ainda que esses trabalhos pareçam dialogar com Diane Arbus, a comparação é ingrata. Diante dela, todos esses trabalhos novos parecem tratar a naturalidade como artifício, como projeto, como gesto desenhado em um storyboard. Arbus simplesmente transita por um mundo em que esses personagens existem. Nos trabalhos que circulam pelas redes sociais, paradoxalmente, o esforço de construir uma abordagem não dramática se revela, por si mesmo, comovente: “também são humanos, gente como a gente, não perderam a dignidade”.

Na média, esses trabalhos são importantes, bem intencionados, inclusivos, até mesmo terapêuticos: ensinam a enfrentar e olhar as situações difíceis da vida. Mas tantos adjetivos, assim reunidos, pesam desconfortavelmente. Vistos individualmente, alguns ensaios são realmente bons. Diluídos num excesso de iniciativas semelhantes, correm o risco de se confundir com mais um sintoma das culpas históricas que acumulamos, e que se desdobram em ações afirmativas (do tipo “sistema de cotas”) e numa pedagogia do politicamente correto.

A repetição e o excesso são quase sempre destrutivos, mas seria um erro desqualificar esses trabalhos em massa. Muitas vezes, esses fotógrafos estão lidando fatos que lhes são próximos, marcantes em sua vida privada, e que muitas vezes assumem uma dimensão existencial mais complexa. Mas também desconfio que outros tantos autores selecionam os dramas que mostrarão numa espécie de brainstorm, como uma empresa escolhe seus projetos de responsabilidade social.

Essas experiências podem ser socialmente úteis, mas tendem a ser efêmeras na medida em que tanto os personagens quanto o modo de abordagem podem ser facilmente apreendidos numa frase: “pessoas com tal história fotografadas de tal jeito”. É exatamente aqui que esses projetos correm o risco de compor uma temática, e de reduzir novamente esses sujeitos a um tipo. Quando isso ocorre, as imagens já nos chegam interpretadas, antes mesmo de se serem efetivamente olhadas. Para boa parte dessas causas, os sentimentos implicados já estão expressos e estocados: temos sempre à mão uma dose compaixão e identificação para esse tipo de drama, mais ou menos como um punhado moedas que deixamos no porta-trecos do carro.

Se esperamos que a arte cumpra o papel de expressão, é preferível enfrentar imagens que provocam sentimentos ainda não nomeados, menos apaziguados, fora do lugar-comum, que não respondem aos dramas já conhecidos. Vejo esse potencial num trabalho como An Eye for An Eye, 1998, do artista polonês Artur Zmijewski (a dica me chegou por Livia Aquino e Solange Farkas). Apesar de antigo, esse vídeo ganhou indicações recentes nas redes sociais e, com elas, uma enxurrada de comentários indignados.

De modo geral, acho mais instigantes os trabalhos que não se reduzem a uma investida num tema, que não portam nenhuma causa ou “bandeira” e que, por isso mesmo, precisam de tempo para serem apreendidos. John Coplans explora tudo aquilo que seu próprio corpo pode render em termos de formas, desenho, volume, texturas. Mais cedo ou mais tarde, é inevitável que suas imagens nos convidem a repensar os padrões de beleza ditados para o corpo. Mas seu trabalho permanece discreto, silencioso, sem qualquer finalidade terapêutica ou pedagógica. Sem dar um rosto a esse corpo, Coplans está mais interessado em buscar nessa matéria seu potencial escultórico, do em nos comover com a coragem de assumir sua condição decadente.

A educação sempre será uma potência de toda boa arte. Mas é preciso desconfiar dos métodos muito pragmáticos e apressados de ensino.

John Coplans. Auto-retrato, 1985

John Coplans. Auto-retrato, 1985

John Coplans. Auto-retrato, 1984

John Coplans. Auto-retrato, 1984

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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