O que significa para a cronologia da fotografia apresentar novos nomes e fatos que poderão trazer mais consistência à sua história? Evidentemente, os novos dados são sempre bem vindos, mas não podemos esquecer que muitas vezes eles nascem relacionados a uma experiência vivida, relatada oralmente por aqueles que participaram do processo. À medida que nos distanciamos no tempo, algumas dessas iniciativas se valorizam, outras se perdem nas sombras do esquecimento, e temos aquelas que vão se manifestando aos poucos, até encontrar o momento exato para se tornarem públicas.
Como muitos sabem, tenho uma pequena coleção de cartões postais brasileiros e essa paixão surgiu quando percebi, no início de minha formação como pesquisador da fotografia brasileira, a potencialidade desse objeto enquanto fonte de informação. Claro que estou pensando nas milhares de séries (sim, milhares!) produzidas na primeira metade do século XX. Com isso, eu me aproximei de um universo delirante de colecionadores, cartofilistas apaixonados pelos temas, pelas cidades, pelos bondes, pelas séries e muito mais. Particularmente, meu interesse é a própria fotografia. Busco entender a produção de um conjunto de cartões postais a partir dos diferentes interesses de seus produtores – social, político, comercial, cultural.
Ado Kyrou, em seu clássico livro L’Age D’Or de la Carte Postale, defende que esse período de ouro ocorreu entre 1900 e 1925, quando as técnicas de impressão evoluíram e possibilitaram à fotografia um espaço de disseminação e distribuição, bem diverso dos jornais e das revistas ilustradas. No Brasil, só para se concentrar nos mais conhecidos, tivemos uma rica produção cartofilista nas séries de Marc Ferrez, Guilherme Gaensly, Augusto Malta, entre outros.
Em contrapartida, tivemos uma produção de menor escala, na maioria das vezes em suporte fotográfico, que podemos hoje entender como cópias de época, atualmente de difícil acesso e raramente encontrado nos nichos especializados em comercializar esse tipo de produto. No Brasil, os cartões postais, em sua maioria, têm como temas vistas urbanas ou rurais evidenciando ora a transformação dos espaços nas capitais e grandes cidades, ora a rotina de trabalho nas fazendas de café ou cana de açúcar. Excepcionalmente, temos algumas cenas do cotidiano, nas quais a figura humana é destacada em sua profissão, como uma das séries de Ferrez, por exemplo.
Nos anos 1940 e 1960, período em que a produção de cartões postais se arrefeceu em todo o mundo, destacam-se algumas interessantes iniciativas em São Paulo. Entre elas, o Foto Postal Colombo, de Sulpizio Colombo, 1888-1970; a CTP (copyright Theodor Preising), de Theodor Preising, 1883-1962; a FotoLabor, de Werner Haberkorn, 1907-1997; e uma misteriosa e numerosa Série F, entre outras. Vou me concentrar na Série F que tanto já perturbou os colecionadores.
Há alguns anos, chegou-se a conclusão de que a Série F era uma produção da Loja Fotóptica e, tão logo constatou-se a informação, fui checar com meu querido amigo Thomaz Farkas, fotógrafo pioneiro do Foto Cine Clube Bandeirante, produtor de cinema, empresário de sucesso e grande incentivador da fotografia brasileira através da revista e da Galeria Fotóptica.
Para minha surpresa, Farkas não só confirmou as expectativas como, ao longo de várias conversas, foi passando boas informações sobre a enigmática Série F. O curioso é que a produção é numerada e chega a mais de mil imagens, mas desconhecemos a série completa. Indaguei-o por diversas vezes para verificar quem poderia ter a série, mas nem mesmo a Fotóptica teve a preocupação de manter pelo menos uma coleção em seus arquivos.
A seleção das imagens também é curiosa. Sem uma edição fechada ou pré-visualizada, me surpreendi ao saber que as fotografias transformadas em cartão postal têm autorias distintas. Podemos, no limite, afirmar que cada imagem tem um autor diferente, porque a seleção se dava de modo muito peculiar. Segundo Farkas, o fotógrafo amador deixava seu filme na loja para revelar e ampliar, atividade bastante comum nesse período intermediário da democratização do fazer fotográfico. O laboratorista, ao se deparar com uma boa imagem – os critérios eram absolutamente subjetivos –, informava o chefe do laboratório e o balconista da loja que faziam a intermediação com o fotógrafo.
Este, por sua vez, quase sempre ficava lisonjeado com a escolha e, em troca de alguns postais e mais alguns descontos, permitia o uso de sua imagem. A tiragem é outro mistério, pois Farkas não soube me dizer com exatidão os números praticados, mas lembrava-se de alguns cartões postais de sucesso que chegavam a 500 cópias. As cópias eram ampliadas em papel Wessel e, na maioria das vezes, a tiragem era feita manualmente.
Um dos funcionários mais graduados da Fotóptica era Fredi Kleemann (1927-1974), de origem alemã e que, durante anos, foi balconista e eventualmente laboratorista. Segundo depoimento de German Lorca, o chefe do laboratório era um senhor chamado Alexandre e talvez um dos responsáveis pela produção das fotografias. Kleemann, por sua vez, também se notabilizou por produzir um precioso acervo fotográfico do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), onde também atuava como ator. Seu acervo foi adquirido pela Secretaria Municipal de Cultura, na gestão de Sábado Magaldi, e encontra-se disponível para consultas na Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo.
Vemos a cidade como metrópole emergente, alguns de seus personagens mais célebres, como o jornaleiro Clóvis flagrado em plena atividade no centro velho da cidade de São Paulo, a flora e a fauna, e alguns cartões de atividades tão singulares que mereceram o destaque de estar na Série F, da Fotóptica. É bom especular: como essa questão era difundida entre os usuários do laboratório? Será que eles fotografavam com a intenção de ter sua fotografia selecionada? O distanciamento histórico e a falta de documentação talvez não permitam que tenhamos respostas precisas. Mas, garanto que durante meus encontros com Farkas, em diferentes ocasiões, provoquei bastante sua memória para extrair o máximo de informações com a intenção de colaborar nessa complexa teia que é a construção de uma história da fotografia contada a partir dos seus principais colaboradores.
Como a Série F é volumosa, reunimos um grupo de colecionadores para juntar as peças e tentar entender através da numeração das imagens, os temas tratados e os espaços públicos eleitos. Claro que, para a Fotóptica, a produção significava mais uma opção de negócio e valorização do cliente. A ideia, segundo Farkas, veio de seu pai Desidério Farkas, e por diversas vezes lembrou-me que havia a produção de cópias em tamanho postal e, entre as melhores fotografias, produziam-se ainda cópias em tamanho 18X24 cm. Ao olhar retrospectivamente o negócio com os olhos de hoje, podemos supor que se tratava de um empreendimento que visava também valorizar a fotografia como meio de expressão e documentação.
Sabemos que, de tempos em tempos, surge uma novidade no cenário da fotografia brasileira. Estamos atentos para a produção contemporânea, mas não podemos deixar cair no esquecimento empreendimentos como esse, de desaparecimento programado à medida que o postal é um objeto efêmero e descartável. Trazer de volta à luz boas iniciativas é também nossa responsabilidade.
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