O processo de criação como memória

[05.jul.2011]

A exposição Bom Retiro e Luz: um roteiro (1976 – 2011), curadoria de Diógenes Moura, no Centro de Cultura Judaica, traz fotografias de Cristiano Mascaro, Bob Wolfenson, Marlene Bergamo e do Coletivo Cia de Foto. O projeto teve como ponto de partida um ensaio de Cristiano Mascaro, produzido em 1976, especialmente para ser exibido na Pinacoteca do Estado, à época dirigida pela crítica Aracy Amaral, que buscava aproximar comunidade e museu, e criar laços de cultura e identidade.

Gostaria de concentrar minha atenção na produção da Cia de Foto – Pio Figueroa, Rafael Jacinto, João Kehl e Carol Lopes. Apesar de dispensar apresentação, não podemos deixar de destacar a atuação deste coletivo que, desde 2003, tem se firmado na produção imagética contemporânea com uma coragem incomum, com singular criatividade e, acima de tudo, com procedimentos criativos que surpreendem a cada novo trabalho.

Cia de Foto, 2011

A primeira vista pode parecer impossível, mas a Cia de Foto se instalou no mercado com a estimulante idéia de criação conjunta ao longo de todo o processo (em síntese, captação, tratamento de imagens e distribuição), muita discussão e a busca permanente de novos modelos de representação. As fotografias do coletivo são quase sempre pautadas pelo incômodo, pela impertinência, e até mesmo pelo posicionamento limítrofe entre sonho e realidade, melancolia e êxtase.

Foi assim com os ensaios “Av.”, “Guerra”, “Carnaval”, entre outros que me lembro de memória. Neles, encontramos imagens – fotografias e vídeo – que provocam nossa percepção, seja desnaturalizando o referente, seja evidenciando uma estranheza que instiga nossa humana curiosidade. Confessaram-me que, para este trabalho, foi grande o desafio de criar, a partir do ensaio de Mascaro e da atual realidade dos bairros Bom Retiro e Luz, um conjunto de imagens que trouxesse um olhar renovado e inventivo. Uma aventura ambiciosa que, depois de longos passeios e grandes discussões, foi se abrindo para o conhecimento da produção fotográfica amadora realizada pelas famílias no passado, quando de alguma forma a fotografia celebrava a vida com imagens de outra ordem.

Inicialmente, a Cia de Foto tentou e procurou se deslocar nos bairros através do tempo. Os passeios se concentraram na arquitetura remanescente, nas Sinagogas, nos passeantes, enfim, naquilo que remetia à origem daquele entorno comercial e habitacional, de predominância judaica. Desolados, descobriram que jamais encontrariam o que buscavam nesta atual configuração. Daí a dúvida: como recuperar o movimento das pessoas que ali viveram e deixaram marcas culturais e simbólicas expressivas?

Diante de tal impasse, foram pesquisar o acervo do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, que reúne material iconográfico desde os anos vinte. Lá descobriram os referentes das fotografias criadas para o seu ensaio. E assumiram que “a história que contamos parte dessa jornada virtual. Nós entramos no tema da mostra, tentando se deslocar pelo bairro através tempo”. Aqui, mais uma vez, vemos emergir o ato criativo com total liberdade, pois a Cia buscava algo diferenciado, que não está mais presente naquele cotidiano, mas que brota espontaneamente de outras experiências.

Atualmente, produzir imagens de certa forma está associado à nossa necessidade de vivenciar uma atividade ficcional que pulsa dentro de nós, de estabelecer narrativas inspiradas e distantes de qualquer reconhecimento imediato. Por mais que tenhamos a pretensão de referendar o nosso cotidiano, a possibilidade de torná-lo mágico e mais experimental é quase sempre mais imperiosa. Desenvolvemos artifícios para estender o prazer do ato criativo e nos afastar da tensão da vida presente.

De certo modo, isso moveu a Cia de Foto. Ao não reencontrar naquele espaço a identidade pretendida, trabalhou por apropriação de imagens, resignificando-as com uma concisão tão transformadora que estamos diante de um raro e consistente ensaio fotográfico. Desafiador do ponto de vista da criação e inquietante pela releitura de um arquivo que reúne a memória fotográfica de famílias de origem judaica.

Afinal, como devemos entender essa radical fragmentação da imagem geradora que me leva a duvidar da sua realidade? É necessário recuperar a composição primeira para entender a decomposição evidenciada no ensaio? Ao mergulharmos no universo do processo criativo, nos deparamos com uma rede de interrelações e de conexões, da qual não é possível detectar com muita precisão o exato momento que detonou a escolha do detalhe que vemos exuberante na imagem finalizada. Encontramo-nos quase sempre no meio do caminho dessa complexa trama inventiva da qual nunca acessamos o verdadeiro percurso da criação.

Cia de Foto, 2011

Olhando as imagens originais, é possível recriar alguns dos passos elaborados que se tornaram portadores do processo criativo. Mas o universo do fazer artístico continua parcialmente desconhecido, pois guarda segredos que aos olhos do observador comum, diante do trabalho pronto e exibido, nunca serão revelados. A palavra retiro é o mote do ensaio: fragmentos retirados de um arquivo de fotografias de um bairro chamado Bom Retiro. O ensaio é, na verdade, outro percurso daquele lugar, feito no tempo presente olhando para imagens de um tempo passado.

Cia de Foto, 2011

Essa trama de grande complexidade é que dá as evidências de que o processo de criação é essencialmente gênese. A fotografia finalizada é apenas a evidência de que há várias instâncias processuais que nos levam a muitas indagações. Que luz recortada é essa sinalizada nas fotografias? Que personagens são estes que invadem a cena como se fossem atores de um instantâneo presenciado? Que significados geram esses documentos fotográficos?

Ficam em aberto as questões. E cito Marcel Duchamp, de um texto publicado em 1957, O Processo Criador, quando esclarece que “o artista nunca tem plena consciência de sua obra: entre as suas intenções e sua realização, entre o que quer dizer e o que a obra diz, há uma diferença”. Essa diferença é a obra. Sem ela é impossível despertar a imaginação do espectador.

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Jornalista, curador e crítico de fotografia, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professor e diretor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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