O Pior é infinito é uma manifestação crítica aos acontecimentos mais recentes na vida de nosso país. São séries desenvolvidas como reação a um Brasil que faz prevalecer as estruturas de exploração inerentes à nossa história, solapando alguns dos lampejos emancipatórios que experimentamos nas últimas décadas. Cada fotografia dessa coleção é uma expressão fragmentária sobre o que percebo vivendo em um estado de golpe.
O referente dessa pesquisa são as imagens publicadas nas redes sociais, arena expressiva, imagética e prenhe de sintomas de nossa atualidade. Em uma distância que coloca a minha vivência, primeiramente, como espectador dos acontecimentos publicados, retiro da rede aquilo que me atrai pela violência simbólica imposta pelo estado de golpe, ou por aquilo que elejo como força de resistência.
Uma das imagens dessa série é uma paisagem constituída no conflito vivenciado na Praça Princesa Isabel, no centro de São Paulo. Em um vídeo(1) veiculado no jornal El País, a polícia militar de São Paulo viola o mais recente acampamento da Cracolândia. A praça firma-se pela verticalidade de um estátua monumental e, ao chão, espalham-se barracos pegando fogo.
Extraí dali os fragmentos para fazer uma fotografia, aproximando o monumento histórico do conflito atual que lhe cerca. Esta imagem parece reter o encontro anacrônico de uma batalha entre um general a cavalo empunhando sua espada e imune ao fogo que arrasa as moradias provisórias da comunidade alijada. Um monumento gigantesco de um dito herói nacional, o Duque de Caxias, montado e suspenso por um pedestal para que, assim, atinja a altura de 48 metros. Abaixo, o cerco dos barracos ardendo em fogo.
A matriz dessa imagem fotográfica é um vídeo retirado do Youtube e exportado para um programa de edição. Um segundo de imagem e seus vinte e quatro quadros foram transformados em uma fotografia. Esses quadros foram sobrepostos e, em cada um deles, foi criada a transparência necessária para que a sequência se misturasse e se tornasse uma só imagem. É possível ver-se as parelhas transparecerem o suficiente para influenciar no resultado do todo.
Além dessa paisagem, a pesquisa desdobra-se em mais quatro séries, descritas a seguir. Todas elas são construídas pelo procedimento de apropriação das imagens que me espantam.
É assim com os vídeos das rodas de poesia da Praça Roosevelt, centro de São Paulo. O grupo do Slam da Resistência usa dos versos como ação, recitando em uma roda com uma oralidade contundente. Dali sai uma oralidade de luta. As questões de raça, de gênero e desigualdade social permeiam os discursos gritados com a sonoridade de uma mensagem que se remonta na ação de palavras urgentes e necessárias. São vozes periféricas em um movimento centrípeto. Aquilo que não se cala desde a criação de nossa sociedade, e que resiste como roda de poesia.
Faço retratos deles gritando. A técnica usada é a mesma já explicada: retiro os quadros vizinhos de um vídeo para criar uma imagem única, retendo frames vizinhos do instante que dura um segundo. O Slam da Resistência veicula suas perfomances em um canal do Youtube e foi dali que retirei a secundagem que compõe as imagens construídas. Imagens com os vestígios de um movimento definindo rostos.
Uma terceira parte da pesquisa vem de colecionar fotografias do movimento protagonizado pelos estudantes secundaristas. Uma geração que se recusa a perder direitos, inovando os gestos e as formas de manifestar. Vozes de uma resistência social às políticas da educação. Isso tudo começou nas escolas públicas de São Paulo e rapidamente mobilizou demais estados do país com ocupações em escolas, assembleias legislativas, entre outros locais públicos.
Das imagens matrizes captadas nas redes, recortei as bocas para uma coleção de gritos. E, como fotografia, agora são unidos por um silêncio fecundo. Coleção de gritos silenciados pela fotografia – linguagem de signos e vácuos. “Silenciar é dizer por outra via, já que o silêncio potencializa o que ali luz, presente, pelo fulgor mesmo de sua ausência”(2). E toda palavra retida nessa imagem, de alguma forma, nos devolve às intenções do que é reivindicado.
Essas Bocas são um discurso a contrapelo e uma mensagem que surge da contenção, não da explosão. “Em meio a reivindicações muito concretas, pontuais, precisas, muitos outros desejos se deixam expressar na dinâmica do próprio movimento. Reivindicações podem ser satisfeitas, mas o desejo obedece a outra lógica – ele tende à expansão, ele se espraia, contagia, prolifera, se multiplica e se reinventa à medida em que se conecta com outros. Falamos de um desejo coletivo, onde se tem imenso prazer em ocupar coletivamente um espaço antes policiado, em ir à rua juntos, em sentir a pulsação multitudinária, em cruzar a diversidade de vozes e corpos, sexos e tipos, e apreender um “comum” que tem a ver com as redes, com as redes sociais, com a conexão produtiva entre os circuitos vários, com a inteligência coletiva, com uma sensorialidade ampliada, com a certeza de que a escola deveria ser o coração de uma sociedade, e não seu apêndice agonizante”(3).
Outra parte desse conjunto é o trabalho que se deu da escuta dos depoimentos dados ao juiz de direito da Operação Lava a Jato. Os vídeos divulgados nas redes trazem os depoentes em primeiro plano de uma mesa ocupada por advogados. Por vezes, ocupam-se também as cadeiras ao fundo, aquelas encostadas em uma divisória pálida que seriam as paredes daquela sala. Os interrogatórios mais parecem um espetáculo consciente de sua face midiática. Ferramenta para construção de um discurso que parece não mais se importar com princípios éticos de justiça, e que incentiva, em grande medida, o golpe que envolve a atualidade política do país.
O que parece é que nenhuma corrupção tem origem naqueles que depõem, tampouco, encerram-se ali tais contravenções. Todos eles se isentam com se fossem apenas agentes de uma cultura, esta mesma que faz de nosso país um exemplo pulsante de desigualdade social. Geramos riqueza sobre a face mais antiquada da exploração, no qual o lucro e o conforto social são privados a poucos, nunca comuns. Nessa história primitiva de domínio, a corrupção é moeda corrente. E, em contrapartida, quem naquela sala julga, recheia os processos com vazamentos para a imprensa, daquilo que parece indicar um juízo condenatório a priori de qualquer defesa. Estão ali, naqueles filmes divulgados dos depoimentos, faces cruéis do que é público, sob uma justiça que personaliza o juiz, quem muito parece um líder religioso, na qual o que se quer acreditar vale mais do pode ser construído como verdade.
“Novidades destes tempos indefiníveis, sentenças judiciais substituem a objetividade sóbria, de pretensões clássicas como se elas própria vestissem a toga, e caem no debate rasgado. Lançamento de verão do juiz Sérgio Moro, nas suas decisões iniciais em nome da Lava Jato, o “new look” expande-se nas centenas de folhas invernosas da condenação e, agora, de respostas a Lula e sua defesa. Tem de tudo, desde os milhares de palavras sobre o próprio autor, a opinões pessoais sobre a situação nacional, e até sobre a sentença e sua alegada razão de ser. Dizem mais do juiz que do acusado. O que não é de todo mal, porque contribui para as impressões e as convicções sobre origens, percurso e propósitos deste e dos tantos episódios correlatos.(4)”
Pois aqui, repito o procedimento de exportar esses depoimentos, e em quadros sobrepostos, faço uma sequência de retratos. A sala me interessa. Os rostos se turvam como se momentaneamente também tivessem a textura de uma daquelas divisórias, todas precárias, ocas, sem pertencimento nem memória. Tudo ali é construído numa câmera virtual, assim como o próprio espetáculo do depoimento se torna ferramenta que coloca o julgamento no campo da construção de um discurso midiático.
Este trabalho está exposto na coletiva Sobre homens e ratos, com curadoria de Renato de Cara.(5)
E, como mais uma parte dessa pesquisa, um ensaio com rostos retirados de uma multidão. Fotos que encontrei em um arquivo próprio. Volto a esse material usando os mesmos procedimentos que permeiam a pesquisa, a saber, recorto das imagens iniciais da multidão os pequenos fragmentos de um rosto desfigurado pela sobreposição das pessoas que compõem esta marcha.
Uma forma de representar uma massa foi vê-la diluída, misturada ao fluxo social que se organiza pela rotina do trabalho em São Paulo. Fazendo recortes sobre as imagens desse arquivo, surgem espectros de uma marcha resignada a voltar para as casas distantes e periféricas. Pessoas que seguem pari passus com a rotina que muito lhe anula os direitos, esvaziada do sentido daquilo que foi outrora idealizado como uma marcha de trabalhadores.
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