No próximo dia 27 de maio, entra em cartaz a exposição Ver do Meio, um trabalho de Nelson Brissac, que provocou três fotógrafos a apreender uma cidade que “não se dar a ver”. Faço parte desse grupo ao lado de Arnaldo Pappalardo e Mauro Restiffe.
São Paulo, com sua trama urbana que não garante precisões, nos levou a uma fotografia que se fez na rua, no embate do corpo com a cidade. Nelson Brissac publica aqui no Icônica seu texto curatorial acompanhado de algumas imagens que estarão expostas.
© Arnaldo Pappalardo
Ver do meio – como o mato que cresce entre as pedras
por Nelson Brissac Peixoto
Uma das características mais marcantes da metrópole contemporânea é ela não se dar à ver. A morfologia da paisagem, o desenho urbano, o esquema das principais artérias e mesmo a localização dos diferentes bairros escapam à experiência dos indivíduos, não se deixam apreender pela observação ocular. Olhamos para essa massa compacta de edificações e não conseguimos discernir a colina, o vale ou mesmo o córrego por ela encobertos. Tampouco somos capazes de intuir, ao andar pelas ruas, por onde passam as avenidas e as linhas de trem que articulam os pontos mais distantes da cidade.
Todas as tentativas de retratar a cidade através da experiência da rua _ a deriva benjaminiana, os planos afetivos dos situacionistas ou a street photography _ implicavam a expectativa de uma renovação da percepção. Mas, no universo totalmente construído e elaborado do capitalismo tardio, não há lugar para essa renovação [1]. Se na cidade tradicional a experiência limitada e imediata dos indivíduos era ainda capaz de sustentar uma apreensão abrangente de sua forma e dinâmicas sociais, hoje isso não ocorre mais.
A legibilidade da paisagem das cidades era relacionada à imaginabilidade, à capacidade de evocar uma imagem forte no observador. Pressupunha referências visuais, um domínio sensorial do espaço, através da experiência e da observação ocular. Mas a configuração atual impede o mapeamento mental das paisagens urbanas. As cidades não permitem mais que as pessoas tenham, em sua imaginação, uma localização, correta e contínua com relação ao resto do tecido urbano. A experiência fenomenológica do sujeito individual não coincide mais com o lugar onde ela se dá. Essas coordenadas estruturais não são mais acessíveis à experiência imediata do vivido e, em geral, nem conceituadas pelas pessoas. Dá-se um colapso da experiência, pressuposto de todo empreendimento de retratar a cidade.
O espaço urbano perdeu situabilidade _ uma inscrição precisa em dimensões geográficas, acessíveis à experiência individual. Instaura-se um problema de incomensurabilidade entre o construído e o projeto, o edificado e o entorno, os diferentes espaços da cidade. Torna-se impossível representar. O espaço hoje é sobrecarregado por dimensões mais abstratas, que a imagem fotográfica, por mais abrangente que seja, não dá conta.
Os reordenamentos intensivos da paisagem colocam novos problemas de percepção e representação. Aqui, simplesmente observar não é solução. Estamos defrontados com um espaço não-visual. O engajamento com as grandes escalas leva à substituição da paisagem imediata por uma nova paisagem: abstrata, dotada de escalas de tempo–espaço que escapam à experiência individual. Introduz a idéia de uma ‘visão’ que abrange o que nenhum ponto de vista pode abarcar. Vemos cada vez mais imagens de paisagens que não podem ser apreendidas diretamente pelo olho. Um modo de percepção não-ocular.
Ocorre uma dispersão do ponto de vista, não mais centralizado no indivíduo, paradigma da perspectiva, instrumento da homogenização do espaço. O resultado é a multiplicação dos pontos de vista. A cidade surge como um caleidoscópio, uma conjunção de modos de ver, em que não existe mais um referencial dominante. Não existe mais uma maneira instituída de ver a cidade, prescrita pela pintura e pela fotografia. Nesse novo contexto da produção contínua de imagens, qual o significado da fotografia? Qual é o papel, hoje, do fotógrafo?
Como, então, abordar fotograficamente São Paulo? O trabalho proposto aos três fotógrafos _ Arnaldo Pappalardo, Mauro Restiffe e Pio Figueiroa _ foi apreender a cidade desde suas ruas e veículos. Imersos nas situações que experimentam cotidianamente seus habitantes. Sem recorrer a nenhum ponto de vista privilegiado, nenhum recurso técnico que permita uma visão abrangente, de longe. Em vez de fotos aéreas, um olhar da superfície, do plano da vida urbana, em confronto com a massa construída. Travar um corpo a corpo com a metrópole, de dentro dela.
A fotografia que se engaja num embate com a matéria, como uma operação física sobre os elementos, aproxima-se da gravura. Aqui o olhar fotográfico tem o ímpeto do gesto que vai cortar a superfície, conquistar o relevo. A vista voltada para a linha do horizonte, mas os pés lastreados no chão. O fotógrafo atua sobre um mundo sólido e resistente. Ele parece empunhar um buril [2].
O fotógrafo encontra-se inapelavelmente mergulhado na cidade, de modo que olhar é também andar, visualizar é tatear por entre muros. Como se o ato de ver acabe sempre pela experimentação tátil de um objeto erguido diante dele e que ele precise contornar. Há um encavalamento entre o visível e o tangível. Esse campo denso entre aquele que vê e a coisa que é vista é constitutivo de sua visibilidade. O olhar apalpa as coisas: estamos no meio do mundo. O tecido do mundo é cerrado como uma vegetação espessa. Enlace de cor, volume, rugosidade ou lisura, dureza ou moleza. Laço que nos ata a tudo ao redor: a visão se faz do meio das coisas.
Ver então não é ver a partir de um ponto de vista, mas de todos. Olhar um objeto é mergulhar nele. Os objetos circundantes tornam-se horizonte, a visão é um ato dos dois lados. Ver um objeto é ir habitá-lo e dali observar todas as coisas. Mas como também nelas estou virtualmente situado, tomo de diferentes ângulos o objeto de minha observação. A visão é localizada, uma relação entre objetos situados no mundo [3].
Essa condição se define assim: estar no meio, como o mato que cresce entre as pedras. Mover-se entre as coisas e instaurar uma conexão entre um ponto qualquer e outro ponto qualquer. Sem começo nem fim, mas entre. Uma zona de indiscernibilidade, em que se apagam todos os limites, todas as fronteiras. O meio é o lugar onde as coisas adquirem velocidade [4]. Ver do meio. O fotógrafo segue a cidade.
Exposição
VER DO MEIO – como o mato que cresce entre as pedras
Instituto Tomie Ohtake
Curadoria: Nelson Brissac Peixoto
Fotógrafos: Arnaldo Pappalardo, Mauro Restiffe e Pio Figueiroa
[1] Jameson, F., Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism, Duke UP, NY, 1991.
[2] Bachelard, G., “Introdução à dinâmica da paisagem”, em O direito de sonhar, Bertrand Brasil, RJ, 1991.
[3] Merleau-Ponty, M., Phénoménologie de la perception, Gallimard, Paris, 1980.
[4] Deleuze, G. / Guattari, F., Mille Plateaux, Minuit, Paris, 1980.
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