A fotografia e a Semana de 22 – Parte II

[26.mar.2012]

A Semana de Arte Moderna comemora seus noventa anos e acredito que ninguém pode negar sua importância como evento que rompeu alguns paradigmas que imperavam na literatura e nas artes em geral daquele momento. Entendo a Semana como uma pequena insurreição que deve sim ser celebrada, mas hoje, com o distanciamento histórico, podemos também apontar alguns vazios que não foram ocupados pelos precursores do movimento.

Como entender, por exemplo, a ausência da fotografia e do cinema, duas linguagens em plena ebulição nas primeiras décadas do século passado? Nesse mesmo período, as vanguardas europeias souberam aproveitar o potencial estético intrínseco às tecnologias de produção de imagem e ampliaram suas insatisfações diante de modelos estagnados de representação. Nossa Semana teve seus momentos de extravagância que causaram surpresa numa plateia havia muito acostumada com a passividade acadêmica, sem crítica social nem dissonância política.

Apesar da fotografia e do cinema não serem contemplados enquanto linguagem artística na Semana de Arte Moderna, alguns dos modernistas tinham conhecimento da sua potência criativa e de sua capacidade de produzir novos questionamentos e novas conceituações sobre como e porquê olhar o mundo visível por meio dessas próteses tecnológicas. Pretendo evidenciar algumas singularidades em parte do trabalho fotográfico de Mario de Andrade (1893-1945) que me permite incluí-lo numa perspectiva modernista. Mario adquiriu em 1923 uma câmera Kodak, denominada por ele de “codaque” (assim como sua máquina de escrever era Manuela, em homenagem a Manuel Bandeira), e iniciou produzindo algumas imagens com a finalidade de “ampliar os álbuns familiares”.

Sabemos que uma das principais características da modernidade está exatamente no fato de ter incorporado estas técnicas com a clara intenção de pensar e produzir arte a partir de novas bases estéticas. Diferentemente do que aconteceu no Teatro Municipal de São Paulo, ocasião em que nossos modernistas não foram suficientemente radicais em suas propostas de renovação em direção a uma nova sensibilidade. Mas, como muito bem lembrou Mario da Silva Brito, “a Semana foi apenas o estopim do modernismo”, cuja finalidade era livrar-se dos dogmas acadêmicos vigentes e abrir novos caminhos para a inovação estética.

A visão instrumental assumida pela fotografia na década de vinte denota com certa precisão a cegueira dos nossos artistas diante da possibilidade expressiva da fotografia e do cinema. Foram poucos os que ousaram propor um uso que fosse além do registro documental. Mas, em maio de 1922, por ocasião da primeira edição da revista Klaxon, mensário de arte moderna e porta-voz dos modernistas, Mario de Andrade assume um discurso mais libertário em relação às tecnologias da imagem e registra no editorial: “Klaxon sabe que a cinematographo existe. (…) A cinematographia é a criação artística mais representativa de nossa época. É preciso observar-lhe a lição”.

Mario de Andrade, Sombra minha, 1927

Mario de Andrade foi o único participante da semana que desenvolveu, mesmo que intuitivamente, alguma atividade com a fotografia. Entre 1926 a 1931, foi assinante da revista alemã Der Querschnitt (O corte vertical), que trazia o melhor da vanguarda fotográfica produzida na Europa. E foi a partir de 1926 que iniciou um percurso diferenciado na fotografia, criando algumas imagens arrojadas que, vistas hoje, ainda impactam pelo olhar corajoso e inovador. Memória e invenção se fundem quando deslocamos nosso olhar para suas fotografias. Como exemplo, temos seu emblemático autorretrato “Sombra minha”, realizado na fazenda Santa Teresa do Alto, de propriedade de Tarsila do Amaral, no dia 1º de janeiro de 1927.

Para Telê Ancona Lopez, essa experiência “configura a incursão consciente pela fotografia como linguagem, a redefinição do olhar através da câmera; a experiência artística, marcada por um forte senso de composição. (…) Mario subverte os planos, corta, experimenta o ‘close’; calcula, compõe e, já se sabe, não hesita em tomar figuras de costas”. O início se dá exatamente em 1926, criando algumas imagens junto aos modernistas, e no ano seguinte quando realiza sua primeira grande viagem pelo Brasil e produz mais de 500 fotografias (negativo no formato 6,1 X 3,7 cm). Denomina o projeto de “O Turista Aprendiz” e inventa o verbo “fotar”. Em sua segunda viagem, realizada entre 1928 e 1929, denominada por ele de viagem etnográfica, produziu 257 fotografias, mas com um olhar mais próximo do registro documental.

Nosso interesse recai sobre aquelas fotografias que rompem com o estatuto convencional do registro fotográfico e possibilitam narrativas mais complexas por parte do observador. Sem dúvida, essas fotografias têm forte influência das experiências vistas na revista alemã que publicava Rodtchenko, Moholy-Nagy, Man Ray, entre outros. Essas referências são fundamentais para a entendermos a fotografia “Amor e Psiquê no Solimões”, de 1927, cuja legenda já traz a citação à escultura de Alberto Canova (1787-1822).

E o que dizer do retrato do pintor “Cicero Dias”, de 1929, que também atiça nossa imaginação pelo estranhamento. Uma imagem vertical, levemente desequilibrada pela posição do corpo do artista e pelo ângulo inusitado da tomada; a divisão entre a luz intensa no terço superior da fotografia e a roupa branca que cobra o corpo estendido na sombra negra na parte inferior. Sem dúvida, traz referências diretas de Moholy-Nagy e Rodtchenko publicados na revista alemã.

Mario de Andrade, Amor e Psiquê, 1926 / Cícero Dias, 1929

Uma fotografia intrigante pontuada pelo foco crítico, pelo enquadramento incomum, pelas formas e ângulos inusitados, e pelas sombras acentuadas. Tudo para exercitar a modernidade presente na produção europeia e despertar no leitor algum senso de novidade. Mas parte expressiva da produção fotográfica de Mario de Andrade centra-se mesmo na documentação dos tipos humanos regionais, com sua cultura e suas manifestações folclóricas específicas, e o patrimônio histórico e arquitetônico com o objetivo de elencar nossa diversidade cultural e material.

Devemos considerar e destacar essa produção como uma verdadeira incursão pelo mundo da modernidade fotográfica tão valorizada nas vanguardas históricas e nem sempre lembrada em nossas reflexões. Mario de Andrade era um típico fotógrafo amador e, talvez por isso mesmo, sua fotografia seja fruto de sua vivência experimental. O tempo todo ele defendia a necessidade humana de viajar, “viagem de criação”, dizia ele, seja através da literatura, seja através das artes visuais.

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Leia também: A fotografia e a semana de 22 – Parte I

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Jornalista, curador e crítico de fotografia, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professor e diretor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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