Colecionando Borboletas

[21.nov.2013]

Um magnífico daguerreótipo de cerca de 1850, da Coleção George Eastman House nos exibe um orgulhoso colecionador de borboletas ao lado de sua vistosa coleção. Uma a uma, ele as pregou contra o fundo claro da caixa que provavelmente mantém fechada para que o contato com a luz e o ar não prejudique os espécimes. Se prestarmos um pouco mais de atenção, ao que temos diante dos olhos, as surpresas se multiplicam. Tudo nesta imagem convoca o duplo. A começar, obviamente, pelas abas das caixas, que se dobram sobre si mesmas. Mas há ainda o caderno de anotações na mão esquerda do colecionador, onde borboletas ressecadas são descritas e analisadas pelo diligente cavalheiro. Na mão direita, a pluma – leve como a asa de uma borboleta – com a qual toma suas notas. Sobre a mesa, uma segunda pluma branca (contraste com asas noturnas das mariposas – pois é deste gênero de borboleta que se trata) repousa sobre o tinteiro.

Em meio a este jogo de múltiplas duplicações, a mais fascinante de todas diz respeito ao próprio daguerreótipo, objeto frágil como uma borboleta de coleção. Deve ser igualmente guardado em um estojo e preservado da exposição à luz, sob o risco de sua imagem evanescer. Como a tênue sombra das asas dos insetos sobre o fundo claro das caixas, os traços de prata que compõem a solene figura do colecionador estão sob o risco permanente do desaparecimento. Imobilizado em sua reluzente caixa dourada, ele é mais um de sua espécie.

lisso_tattooAo longo dos últimos dois séculos houve uma redução brutal no número de espécie de borboletas e raramente podemos vê-las acomodadas em caixas – a não ser nos acervos seriados dos antigos museus de História Natural. Mas uma nova família de borboletas esvoaça em torno de nós. Estão por toda parte. Observei uma delas, de uma espécie que muito me interessa, no ombro de uma fotojornalista do Rio de Janeiro. Aparelhos dos mais diversos formatos, além de objetivas, foles e diafragmas, característicos de uma tecnologia que deixa de existir – a câmera analógica – sobrevivem agora pousados no corpo de fotógrafos profissionais e amadores, como fósseis que acabam de retornar à superfície.

Walter Benjamin já nos havia alertado que o destino de tudo aquilo que perde seu uso é transformar-se em fantasmagoria do qual o pensamento se apropria na forma da imagem dialética. No corpo da jovem fotógrafa, a câmera-fóssil recupera seu movimento. Ali, ela dança, não mais como ente do mundo, mas como espírito encarnado que decalca na pele do vivo a sombra de seu próprio desaparecimento.

Há uma enorme distância entre estas duas imagens: distância cronológica de mais de 150 anos, distância tecnológica entre o daguerreótipo refinado e a foto digital tirada por um celular barato. Mas há também uma inquietante afinidade. Afinidade de gesto, afinidade de instrumento: a perfuração que fixa no interior da caixa a borboleta incrusta na pele da fotógrafa a tinta que desenha a câmera. Na ponta destas agulhas um corpo se transforma em imagem e uma imagem adquire corpo. É no âmbito desta estranha conjugação de distância e afinidade, de corpo e imaginação, que toda uma nova história da fotografia se desenrola.

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Historiador, roteirista, pesquisador, doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da ECO-UFRJ.

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