A fotografia como teatro da memória*

[04.jun.2012]

Luis Gonzalez Palma, “Como un secreto seduce a si mismo” (série Hierarquias da Intimidade), 2005

De onde vêm estas cenas de Luis Gonzalez Palma? Da memória – é fácil responder. O próprio artista nos diz em um texto de apresentação de seu trabalho: “memórias imaginadas”.  Mas que diferença há entre “memórias imaginadas” e nossas recordações vulgares? Mesmo aquelas que a distância no tempo esmaeceu?

Walter Benjamin escreveu uma vez que, na hora da morte, isso que passa pela cabeça dos homens são como as figurinhas que colecionava quando criança – figurinhas que envolviam um feixe de balas em forma de palitos. Isto é, são imagens fixas que enfeixam um monte de outras. Um feixe de lembranças onde se misturam o vivido e o não vivido (porém, sonhado). Mas estas imagens vêm e vão, muito rapidamente. Não é possível retê-las por tempo suficiente para fixá-las com segurança.

Há aqui um problema de difícil solução em relação a esta memória que não é simples recordação. Como é possível dar-lhes uma feição que as possa comunicar, como torná-las visíveis?  Como atribuir-lhes uma moldura, um contorno, uma finitude física? Operação complicada, pois este tipo de imagem, longe de ser uma coisa, é antes um invólucro, um envoltório, um fio que faz com que certas lembranças  estejam atadas umas a outras.

Este fio não é outro se não aquele com os quais tecemos a nós mesmos como sujeitos. O fio da memória e do esquecimento: que ora reluz, ora desaparece no tecido de nossas vidas.  O artista nos diz que suas fotografias são imagens da “vida interior” e que com elas procura “encher os vazios”. Mas o que ele nos entrega não é a paisagem densa da qual todo o espaço vazio foi banido, mas um tipo de preenchimento que carrega o vazio junto consigo. A série “Hierarquias da Intimidade”, assim como quase toda a obra recente do fotógrafo, é formada basicamente de encenações. Mas nessa mise-en-scène da memória, uma cena nunca é a reconstituição de um vivido, mas resulta dessa mescla que traz consigo o imaginado, o desejado e o jamais vivido: o vazio.

O filósofo Gilles Deleuze disse uma vez que aquilo que se opõe à memória não é o esquecimento, mas o esquecimento do esquecimento. O que estas imagens colocam em cena – e isto é parte do seu grande estranhamento e beleza – não são fragmentos de uma narrativa que o espectador possa preencher, como se fossem “fotografias de cena” de um filme.  São quadros dramáticos que demandam de nossa própria memória e imaginação, isto é, cenas cujos vazios serão preenchidos por imagens oriundas do nosso próprio esquecimento. Se, em sua motivação original, estas fotografias procuram expressar a memória fragmentada do artista, elas igualmente pretendem nos abrir vias de acesso provisórias à nossa própria vida interior, pois como o fotógrafo afirmou na entrevista que concedeu por ocasião do Fórum de Fotografia de São Paulo, em 2010: “Ninguém sai incólume da infância”.

As encenações não são estranhas à fotografia. Começaram a ser largamente utilizadas no simbolismo, nas últimas décadas do século XIX, e seguiram sendo praticadas, neste contexto, até o advento e hegemonia do modernismo nas décadas de 1920 e 1930. Mas permaneceram em vigor no âmbito das vanguardas históricas:  nas justaposições surrealistas, por exemplo, a fotografia funcionava como um “palco”, um ambiente homogêneo, capaz acolher as mais dramáticas combinações de elementos disparatados. Uma vez que a fotografia instantânea realizava-se em um “um piscar de olhos”, a fotografia surrealista procurava por imagens que se deixassem contaminar pelo que os olhos “viam” quando estavam cerrados. Mas tudo que a fotografia surrealista podia oferecer era o meio transparente, o testemunho neutro destes encontros “surreais”.  Mas nas cenas de Gonzalez Palma, o meio nunca é neutro. Ele tem sua própria textura e sua própria dimensão. Sua própria materialidade.

Lâminas de ouro ou prata, viragens, tecidos, cabelos… Neste teatro da memória, as cenas da vida interior não se desenvolvem diante de mim como um espetáculo, mas se desenrolam como um pergaminho, um texto antigo, uma tapeçaria.  Não evoco os tapetes por acaso. Trata-se, a meu ver, de uma analogia precisa, pois nestas cenas, a lembrança é a trama, e o esquecimento a urdidura.

Luis Gonzalez Palma, “Tu mirada me distorsiona sin saberlo #1” (série Guardaespaldas), 2009

Dar conta desta memória, tramar e desenrolar esta tapeçaria tem suas exigências poéticas próprias. Primeiramente, no âmbito da materialidade dos objetos e das texturas. Há objetos e móveis nestas cenas, mas estes nunca se conformam em ser apenas parte dos cenários. Cadeiras, mesas, camas, lustres, disputam o protagonismo. Quando o alcançam, tornam-se de algum modo animados, mas nunca deixam de ser objetos e de aparecer como objetos. As texturas por sua vez, também insistem: páginas de jornal e livros, lâminas de prata e ouro, estojos, tecidos. A essa estranha combinação de precariedade e fragilidade (do papel, por exemplo) e eternidade (do ouro), o artista tem dado o nome de espessura.

A espessura nos impede de pensar nestas imagens apenas como sonhos distantes ou lembranças etéreas. Por meio das materialidades, estas imagens se mostram vivas, elas nos perturbam, pesam, duram.

O segundo elemento desta poética é a repetição, a insistência, o retorno: dos objetos, dos personagens, dos ambientes, das texturas. Repetições que ocorrem no interior de uma mesma imagem, no interior de uma série, e de uma série a outra. A repetição nos diz da insistência das lembranças, mas também da insaciabilidade dos vazios e na inesgotabilidade da memória.

Luis Gonzalez Palma, “Se iba apagando la luz de su mirada” (série Hierarquias da Intimidade), 2004

O terceiro elemento poético que reconheço no fotógrafo é a “distância”. As distâncias também se multiplicam, tal como tudo mais. E isso não chega a surpreender em um projeto que ganhou este nome raro, verdadeiramente paradoxal: “hierarquias da intimidade”. Pois, o que se costuma dizer é que a intimidade abole a hierarquia (no trabalho, na escola). Mas na obra de Gonzalez Palma trata-se do contrário. Trata-se de desdobrar a intimidade até que nos defrontamos com a distância que ali vive em segredo. Distância do sagrado (Hieros) naquilo que está próximo a nós. Distância daquilo nos é mais íntimo, onde se guarda, misteriosa, quase irreconhecível, nossa “origem” (arché).  Mesmo quando aparecem vizinhos um do outro, pessoas e objetos familiares, estão distantes. Porém, quando ocorrem afastados um do outros, estão presos a um mesmo vínculo secreto.

E há finalmente, o gesto. O gesto, e não o olhar, é o grande operador destas fotografias. É o gesto que reúne objetos, rostos, que arranja os espaços e texturiza as superfícies. E é por meio do gesto que lembranças supostamente mortas ganham vida. É o gesto que desenrola esse papiro, que desdobra as lembranças, que examina suas ocorrências e combinações, e lhes confere espessura. É por meio do gesto que as imagens interiores provam sua existência e que testemunhamos sua insistência. E, no entanto, o gesto quase nunca se faz representar diretamente.

Luis Gonzalez Palma, Estudio de la Anunciación de Reni, 2006

Mas o fotógrafo tem uma série assombrosa, chamada “Anunciação”, em que o gesto adquire uma visibilidade absoluta nas mãos que se isolam e se desdobram em infinitas variações. Mãos que são pura potência de realização, impregnadas da factura dos grandes pintores, mas isoladas daquilo que anunciam. Há uma curiosa e intrigante relação entre esta série e as “Hierarquias”, pois o gesto da “anunciação”, conforme a teologia cristã, é o mediador da transformação da imagem em carne. Isso é o que mais me fascina na obra de Luis Gonzalez Palma: não se trata de simples “representação” de memórias, imaginadas ou não. A representação, apenas, não seria suficiente para “encher o vazio” (e rechear de vazio, o vazio cheio); foi preciso evocar o teatro para que, além da representação, houvesse ali uma encarnação.

Reencarnar as imagens, até as mais remotas, inacessíveis, interiores, essa parece ser a tarefa deste fotógrafo-anunciador em um tempo em que a visualidade do mundo e de nós mesmos se tornou a cada vez mais fluída, mais impalpável.

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* Este texto é o resultado de uma conversa com Luis Gonzalez Palma, por ocasião do encerramento exposição “Escenas”, na Galeria do Instituto Cervantes, no Rio de Janeiro, em 15/09/2011.

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Historiador, roteirista, pesquisador, doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da ECO-UFRJ.

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