Da série de fatos inexplicáveis que são o universo ou o tempo acrescentaria a fotografia. Uma espécie gabinete mágico, a espera de que algo aconteça para, enfim, revelar-se.
Sua sobrevivência histórica é ainda mais enigmática. Hoje? Entre tantas tecnologias inovadoras, entre tantos hibridismos imagéticos: como poderia a fotografia não ter sido totalmente tragada pelas famílias de imagens que não cessam de se multiplicar e fundir-se?
Sua persistência é, provavelmente, acontecimento que ninguém poderia pressentir. A despeito dos prognósticos mais acurados de teóricos e pensadores da mais alta qualidade, que avistavam apenas seu declínio histórico e seu desuso prático; a despeito da diminuição de sua eficácia e de seu poder: a fotografia hoje salga.
Salga, porque, como a carne, se sacrifica por outra. Mas salga também porque nesse sacrifício parece conservar o trânsito da voz que, um dia, teria já entoado. Salga como os alimentos, que têm sua decomposição ralentada – salga porque se compõem enquanto se decompõe. Mas como se haveria de salgar?
Sua persistência acontece disseminada, dissimulada, transmutada¬ em várias imagens, vários objetos. Uma persistência da qual só conhecemos seus restos, vestígios da carne que foi convertida em “outramentos”, como aqueles fósseis aquáticos que criam suas próprias sedimentologias. Sedimentada – em todos os instantes que transcorreram entre os dias em que primeiro veio a ser e os de nossa atualidade – a experiência fotográfica carrega a projeção em retrospectiva das diferenças e das sincronias entre aquilo em que ela se constituiu e o que já não pode mais ser. Entre aquela crise temporal que a configurou e uma profunda alteração tanto no diagrama da temporalidade do mundo quanto da imagem. Entre um estado intensivo que efetiva o tempo de acontecimentos – aquele que a cronologia não consegue devorar – e as dificuldades que as fotografias contemporâneas apresentam em disponibilizar tal experiência.
A fotografia atual se tornou o fóssil da convivência de dois regimes concomitantes, duplamente relativos, posto que um só pode se dizer em relação ao outro. Dois regimes que compartilham em segredo a tensa coexistência entre o que podia e o que já não pode mais.
Se a fotografia cometeu suicídio (como pensou a pesquisadora norte-americana Abigail Solomon-Godeau), é esse fantasma que ronda por aí. Espírito teimoso que, ao vagar pela história, ri quando adentra os lugares sem ser convidado. Ri quando se apodera das casas; dos contos dos escritores; dos garçons e da cigarras. Espírito do ar que vaga principalmente na vida cotidiana. Viajando, carrega em sua bagagem o enigma de fazer o tempo abismar por uma espécie de voo suspenso, distensão do tempo na contração do movimento.
É esse enigma que ele tenta disseminar, soprando no ouvido das dezenas de milhares de pessoas que, seguram câmeras (já não são estritamente fotográficas) e ainda exclamam:
Fo…. to… gra…..fi….a….
Então, quando percebemos a profunda aderência entre a vida comum contemporânea e a imagem, ele novamente sopra: Fo…. to… gra…..fi….a…., e quando vemos que a imagem abdicou do acontecimento e preferiu a banalidade…, lá vem ele novamente: Fo…. to… gra…..fi….a….
Talvez sejam anjos também, mas, sobretudo ele, esse fantasma. Talvez o que os anjos façam seja apenas guardar a sorte dessa alma vagante. Entendido, então. É o sussurro dele, tentando manter sob seu domínio toda a compulsividade imagética que se integra ao cotidiano contemporâneo; é seu reclame que diante da naturalização com que os dispositivos imagéticos se impõem hoje à vida do homem comum ainda nos faz pronunciar, ecoando seu sopro, Fo…to…gra…fia.
O ritmo, a frequência, a quantidade e o destino das imagens atuais e todo esse deslocamento das representações… e o fantasma insiste: fo…to…gra…fia. Quando a imagem assume o caráter monumental no mundo contemporâneo, ele ainda repete: fo…to…gra…fia.
Sopra principalmente ao ouvido dos passantes da vida ordinária – que, desatentos, só repetem o anúncio. O Espírito ri (decerto). Ri principalmente quando faz os mais atentos sentirem sua presença no momento exato em que já se vai. Sua gargalhada ecoa no espaço, e, enquanto repetimos sua sentença, nossa voz já não faz mais sentido para nós.
Fotografia???
Ele ri e sai porque sabe que está sempre ameaçado, passível de desaparecimento. O eco do seu riso é, então, a convivência paradoxal de dois regimes de visibilidade.
O fantasma nos faz indagar se estaríamos livres de seus ecos se, como aconteceram com outros sujeitos, as imagens fotográficas de todos os nomes perdidos tivessem pouco a pouco desaparecido, sem deixar rastros ou vestígios. Talvez o fantasma nem saiba que, no fundo, a história concedeu-lhe o privilégio do abandono: esquecido nos arquivos, nos álbuns, nas casas, nos olhares. Escapando por vezes da lei compulsória da mudança, ficou por aí, se movendo entre as imagens, rindo de nós, fazendo com que sua presença seja sentida toda vez a que nos deparamos com uma vertigem temporal concentrada, com a força abismal que a duração, liberta do movimento, dispara.
Trágico que ele ainda exista: toda vez que sopra pelo ar o vulto fo…to…gra…fia e consegue fazer disparar estados fotográficos (que já não dependem sequer da existência de uma única fotografia) nos exige lidar com o precipício de um tempo intensivo. Sem que de fato habite plenamente no presente, nos obriga a lembrar a fragilidade de nossa existência e o nosso limite em pensá-la. Nos coloca em perigo porque testemunha que os caminhos do labirinto da fotografia e do tempo são como caminhos no mar, fugitivos da métrica.
Pois essa é a crise que o fantasma, nos atingindo com estados fotográficos, disponibiliza. Nos retira do fluxo habitual e nos faz ingressar numa duração sem medidas espaciais. Se enfrentamos a imagem petrificada de nossa eternidade, também a lucidez nos ocupa e, num instalo, percebemos que essa é desde já a imagem do esquecimento que seremos. O estado fotográfico requer, então, que se concilie a inscrição dos rastros de nós mesmos com a vastidão do esquecimento que elas implicam. Instala-se a suspensão: andaria o tempo apenas de ida? Caminhos entrelaçados nesse enredo fotográfico nos dirigem ao passado, como se andássemos para trás, simultaneamente, a que nos aproximam do fim. Como se entrássemos no fim pelo caminho de trás, como se as pontas do tempo se tocassem através de um pequeno buraco de agulha. Desse orifício, nos encontramos com a imagem impossível do instante e, simultaneamente, com a materialidade da experiência de momentos de sobressaltos, com a potência da singularidade temporal.
Nesse abismo que já não se pode medir com o deslocamento dos ponteiros do relógio, emerge a crueldade que reivindica o fantasma da fotografia: o enigma de um tempo sem movimento.
Pois me parece que a perversidade desse vulto, senhor de estados fotográficos, está em instalar dobras temporais infinitas sem que nada necessariamente se mova. Dobras entre ciência e magia; poesia e pensamento; tristeza e alegria; entre os tempos passados, presentes e futuros; entre perda e vida; destruição e preservação; escrita e seus sucessivos apagamentos. O fantasma, assim, nos coloca diante de um labirinto de dobras, num conjunto de percursos intrincados que, desorientados, tentamos percorrer sem que de fato algo se desloque. Já não é mais a história e sua decorrência cronológica que nos separa do que encontramos na imagem. Já não se pode seguir linearmente a história para distinguir a minha da presença do passado; já não transitamos na extensão. Desenrolamos virtualmente os fios de novelos contorcidos e bifurcantes em um território sem centímetros, que flui verticalmente, fora das réguas.
A sobrevivência fotográfica no mundo contemporâneo é trágica porque não nos permite esquecer; trágica, porque nos coloca diante do destino das imagens e do nosso destino. Por que vagaria ainda a voz do fantasma? Viva e, simultaneamente, morta; potência sem corpo, a fantasmagoria do estado fotográfico nos faz pesar o fato de ainda sermos tomados por estados fotográficos quando já não sabemos se podemos suportar sua experiência: quando já não podemos esperar nem hesitar para clicar; quando já não desejamos lidar com a ausência do movimento; quando o instante já não parece pretender interromper o fluxo; nem crivar o tempo com a marca do acontecimento.
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* Adaptação do texto publicado em Prefácio, livro de Cia de Foto com texto de Cláudia Linhares Sanz e Ronaldo Entler, dezembro de 2012.
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