Há poucos dias fui surpreendido pelo curador de fotografia da Pinacoteca do Estado, Diógenes Moura, com um comentário: “você sabia que faz 40 anos que foi publicado o livro Viagem pelo Fantástico, de Boris Kossoy?”. Realmente, não tinha me dado conta da data – junho de 1971 –, mas imediatamente indaguei se poderia usar essa informação para escrever aqui no Icônica. Liberado, me questionei: se tenho um bom arquivo, se documento uma cronologia da fotografia brasileira há décadas para manter-me atualizado, por que não faço consultas com regularidade para poder celebrar certas datas?
Devemos respeitar mais nossa história e comemorar algumas efemérides que pontuam as principais referências. E para isso precisamos refrescar permanentemente nossa memória. O livro de fotografias de Boris Kossoy, Viagem pelo Fantástico, da Livraria Kosmos Editora, esgotadíssimo, ainda hoje é desconcertante. Para a nova geração de artistas e fotógrafos que não teve a oportunidade de folhear as páginas desta viagem, é preciso descrever um pouco o ousado projeto gráfico e a direção de arte (ambos de Kossoy).
O livro é trilíngue – português, inglês e francês –, coisa rara naquele momento, é impresso em dois tipos de papel, craft e couche, formato 22 X 31,3 cm, e tem prefácio de Pietro Maria Bardi, o então diretor do Museu de Arte de São Paulo. Na primeira guarda, traz uma fotografia em forma circular de um berço (lado direito) e de um relógio (lado direito) que marca exatamente 6H44m. Na outra guarda, a fotografia também circular de um manequim menino (lado direito) e de um relógio distorcido (lado esquerdo), como as representações surrealistas de Salvador Dali. O tempo passou pelas páginas da viagem e as fotografias deixam claro que nada é gratuito nesta obra diferenciada no cenário editorial do Brasil e da América Latina.
Depois do texto de Bardi, que exalta o trabalho fotográfico e se refere a ele dizendo que “estamos vivendo num tempo de novos ideogramas”, chegamos às fotografias de Kossoy divididas como se fossem dez pequenos ensaios – A mulher e a cidade; Cenas num parque; Aeroporto; A estrada de ferro; A montanha; O viaduto; Cenas numa casa; Poder mágico; O maestro; Outros tempos… Aliás, o próprio autor recentemente denominou os capítulos de “contos fotográficos que exploravam o drama existencial, os cenários urbanos, além de enveredar pelo político, a partir de imagens simbólicas”.
Kossoy propõe e assume em sua fotografia um caráter ficcional e traz elementos conflitantes na cena questionando nossa certeza sobre o estatuto da veracidade fotográfica (vide a sequência Cenas num parque). Em outros ensaios migra de uma fotografia documental incomum para imagens que provocam dúvidas acerca da nossa compreensão de realidade. Uma espécie de tableau vivant que combina intensa dramaticidade com um cenário absolutamente non sense.
As fotografias querem contar uma história, mas as conexões e as combinações são de responsabilidade do leitor que tece uma narrativa possível dentre as inúmeras propostas pelo autor. Ou seja, podemos entender o livro Viagem pelo Fantástico como uma obra aberta, uma vez que a intensa qualidade narrativa possibilita a proximidade de imagens díspares. Por exemplo, como justapor a fotografia da mulher-noiva aguardando os acontecimentos na estação ferroviária com aquela do maestro diante de dezenas de túmulos (um dos quais mostra o nome de Perpétua), regendo dramaticamente uma sinfonia silenciosa?
O interessante é justamente buscar entender em nossa livre associação que Kossoy não segue a tradição da fotografia documental produzida naquele momento no país, mas busca se enveredar pela tensão, pelo instante aparentemente encontrado ao acaso, mas que foi meticulosamente engendrado. A literatura é sua principal influência, daí essa sensação de inquietude que instiga nossa curiosidade sobre sua representação fotográfica que cria espaços para buscar aproximar aquele mundo representado da nossa experiência sócio-cultural.
Olhando com os olhos de hoje, o livro é muito especial e raro. Primeiro, porque talvez ele represente o melhor da experiência com a linguagem fotográfica; depois, porque reúne Bardi e Kossoy, dois nomes emblemáticos das artes visuais no Brasil; e, finalmente, porque é o projeto editorial de livro fotográfico mais arrojado que tivemos nas últimas décadas. E mais, Viagem pelo Fantástico permanece contemporâneo porque confere à nossa imaginação o poder de criar sem obviedade uma livre associação homem-mundo. Quando escrevo contemporâneo, quero me aproximar da proposta de Giorgio Agamben: “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. (…) o contemporâneo é justamente aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda a luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho das trevas que provém do seu tempo”.
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Site de Boris Kossoy: www.boriskossoy.com
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