Referências cruzadas – outras luzes (II)

[21.maio.2013]

Eu não sei com precisão quando surgiu meu interesse por uma informação qualquer que “cerque” a fotografia. Lembro-me bem das embalagens que utilizava há mais de 30 anos em minhas atividades e que tinham alguma importância à medida que, em cada filme e em cada caixa de papel fotográfico, percebia diferenças entre cores, tipos gráficos e design. Isso identificava os produtos que nos idos dos anos 1970 eram de marcas bem distintas. Além disso, os anúncios publicados nas revistas Iris, Fotóptica, Cinótica e a do Foto Cine Bandeirante eram bem curiosos.

Hoje, quando me deparo com o material acumulado nos últimos anos sinto que foi certeira minha decisão de buscar a papelaria impressa em torno da fotografia. Tenho concentrado meu olhar nas lojas de material fotográfico que, invariavelmente, também ofereciam os serviços de revelação de filmes e ampliação de cópias. Temos algumas casas muito tradicionais que foram fundadas ainda no século XIX como distribuidora de material químico fotográfico, para mais tarde incorporar em seus serviços o atendimento ao fotógrafo amador.

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Uma das mais lembradas é a Casa Stolze S. A., fundada em 1874, provavelmente em Hamburgo segundo Boris Kossoy, e que nos anos 1920 atendia seus clientes na Rua Direita, 14, no famoso triângulo central da cidade de São Paulo. Mantinha filiais na Rua São Bento, 23, em São Paulo, e na Rua João Pessoa, 193, em Recife, o que ampliava significativamente sua esfera de atuação. O proprietário Carlos Henrique Stolze, no final século XIX, já se encontrava no Brasil associado a Werner Otto Stück, oferecendo serviços através da Casa Stolze & Stück. Deles, tenho um catálogo datado de 1911 que traz uma incrível diversidade de câmeras e acessórios para a produção fotográfica em geral, afora todo o material necessário para processamento e apresentação da cópia fotográfica.

O material gráfico começa a ficar interessante na primeira década do século passado, logo após o advento das novas possibilidades de impressão. Também coincide com o surgimento de dezenas de revistas ilustradas em que a fotografia era a novidade da comunicação rápida, eficiente e precisa. Veja por exemplo a atualidade do que registrou o poeta Olavo Bilac, em 1904, no primeiro número da luxuosa revista Kosmos: “A atividade humana aumenta numa progressão pasmosa. Já os homens de hoje são forçados a pensar e a executar em um minuto o que seus avós pensavam e executavam em uma hora. (…) O livro está morrendo, justamente porque já pouca gente pode consagrar um dia todo, ou ainda uma hora toda, à leitura de cem páginas impressas sobre o mesmo assunto.”

Como sabemos, o início do século XX é de um intenso frenesi tecnológico e claro que a fotografia aplicada nas revistas ilustradas e nos jornais vai cumprir um papel decisivo na leitura apressada da cidade da época. Mas isso é assunto para outro post. O interessante é que, a partir das duas primeiras décadas do século passado, há um clima de novidade no ar, e muitas casas comerciais se instalam ou ampliam suas atividades com a finalidade de atender uma demanda nascida com a proliferação das câmeras fotográficas. Era preciso revelar e ampliar as fotografias produzidas pelos amadores.

Bem, o que me interessa mesmo é a papelaria que foi criada para atender essa demanda e como os envelopes serviram também para fazer a propaganda dos grandes fornecedores, tais como a Kodak, a Ilford, a Agfa, entre outros. Devemos associar essa manifestação gráfica com as tendências gerais da época. É possível verificar nas primeiras décadas a influência do art nouveau e, mais tarde, a incorporação dos elementos básicos da tipologia e do design ao art déco. Essa multiplicação dos processos de impressão deve-se ao rápido florescimento da indústria gráfica que, em âmbito nacional, assimilou pelo menos duas novidades importantes: a zincografia e a autotipia. A zincografia permite que o suporte para o original seja o próprio papel, e a autotipia vai viabilizar o uso da retícula (malha de vidro) permitindo os meios tons (half tone nos EUA e na Inglaterra). Esse último processo permite gravar uma chapa denominada clichê que pode ser impressa juntamente com os textos tipográficos. Orlando da Costa Ferreira, em seu livro Imagem e Letra, de 1976, foi o primeiro a atribuir a devida importância à história gráfica no país.

Algumas das características do art nouveau são as curvas e as direções imprevistas de suas linhas, normalmente dinâmicas e ondulantes, criando ritmos e assimetrias que se harmonizam. Há também o efeito decorativo muito utilizado no design, em particular nas artes gráficas, em que é possível encontrar inúmeros exemplos no início da República brasileira que utilizava com frequência as formas florais e curvilíneas. Veja os exemplos do estúdio de C. Rosen e um envelope da Casa Duarte e Salerno do início dos anos 1920.

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Já o art déco (termo de origem francesa, abreviação de arts décoratifs) é um movimento popular de design que prevaleceu entre 1925 (ano de Exposition Internationale des Arts Décoratifs et Industries Modernes) até meados dos anos 1940, que buscava simplicidade no estilo. Algumas das características são as linhas retas ou circulares estilizadas, as utilizações das formas geométricas e aerodinâmicas. O art déco tem presença marcante na papelaria produzida no período, como mostra o envelope da Casa Stolze, em parceria com a Kodak e a Óptica Photo Moderna, que traz uma tipografia centrada nos cânones do movimento.

 

O envelope de São Paulo Photographico, feito em parceria com a Agfa, evidencia a transição, pois enquanto a representação da mulher tem o estilo aproximado ao art nouveau, o logotipo Agfa Foto já é totalmente sintonizado com o art déco.

 

Apreciando algumas peças da coleção, podemos facilmente perceber a evolução da linguagem publicitária através desses suportes e constatar que esse rico fenômeno ainda não está devidamente associado à história da fotografia. Outro dado interessante é que a principal preocupação de alguns desses laboratórios era fixar uma identidade visual junto ao público consumidor.

A impressão em cores nas primeiras décadas do século passado deu um salto gigantesco de qualidade e isso pode ser detectado na tipografia utilizada e nas cores chapadas. Vale ressaltar o quanto é surpreendente o apuro técnico no acabamento, o que denota a preocupação na integração entre texto e imagem, as conexões com a linguagem modernista da época.

Bem, essa amostra é parte de uma pesquisa mais ampla que venho desenvolvendo sobre os papéis efêmeros da fotografia, uma vez que esse material nem sempre foi preservado mas, quando se monta um conjunto fica mais fácil estabelecer relações, compreender e valorizar sua importância. Infelizmente, quase nunca aparecem os créditos do designer e da gráfica responsáveis pela criação. A primeira preocupação é estabelecer novos olhares para a história da fotografia e reiterar essa história através, por exemplo, dessa rica e permanente peça gráfica, quase sempre esquecida pelos pesquisadores. Elas guardam uma memória que não é aquela constituída apenas por artistas e marcas globais, mas também pelas lojas e seus anônimos clientes, que a cada semana, deixavam seus filmes para revelar e ampliar. Agora, eles serão lembrados e a palavra revelação tornar-se perfeitamente adequada.

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Leia também: Referências Cruzadas – outras luzes (I)

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Jornalista, curador e crítico de fotografia, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professor e diretor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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