Adelaide Ivánova escreve. Escreve com tanta frequência, produz tanto, que, penso, escreve até mais do que vive. Seu texto é urgente, imediato. Sempre com um gosto de uma conversa impulsiva. Suas palavras me chegam radiosas, incontroláveis; ora machucadas, arranhadas, escapulidas de uma ebulição qualquer.
Mas este post aqui, na verdade, é sobre um outro matiz de seu trabalho, um livro de fotografias recentemente publicado. Primeiras lições de hidrologia – e outras observações é, ao mesmo tempo, um álbum de família e um guia crítico do Recife. Adelaide mostra uma cidade atual impregnada por imagens que foram feitas bem antes de ela própria nascer. E essa pesquisa histórica inclui fotografias de seu pai, a quem retrata pela reconstrução da trama que a constituiu afetivamente. Um autorretrato que abarca um antes, um tempo quando ela ainda não tinha maturidade para perceber-se, mas já experimentava as ações desse tecer. O trabalho é atrevido e poético. Gesto artístico que se soma à inteligência indelével do olhar de uma filha sobre a história herdada. Narrativa fotográfica tão contundente quanto a escrita de uma artista que volta à vida no exercício de burilar-se.
No embate que, pessoalmente, travo com a fotografia, resta-me uma memória sobre aquilo que não tive plenamente. A fotografia tem essa natureza. Cria mágicas e soma coisas que costumamos tratar por separadas. Faz unir, em uma única via de experimentação, o que somos e aquilo a que renunciamos; o que testemunhamos e inventamos; o que seria a nossa vontade sempre tão negada pelas nossas ações. A paixão – ou dependência – que tenho da fotografia é a possibilidade de me confrontar comigo mesmo, com Juca (com quem sou casado), com os meus e todos e tudo o que amo, como finitos, como imagem. Falar de nossas vidas é, sobretudo, confirmar que a vida é uma história[1].
Passei um tempo pensando e afirmando a fotografia como objeto. Fotografar a fotografia me perseguia como uma grande máxima. Mas se é para manter tal dicotomia, se é para falar sobre nós e o mundo como polos de um “entre” onde as coisas acontecem, me sinto tentado a inverter os papéis: a fotografia é sujeito, pois eu mesmo sou objeto dela. A inquietação posta em cena por essa linguagem chega com a consciência de que só conseguimos ter alguma experiência via imagem. E aqui falo tanto daquela que se cria em nós, por memória ou imaginação, quanto da imagem técnica, pela qual compartilho o impulso de fabricar realidades por um aparato que se compromete com o impreciso.
Essa é uma ideia central que capto do livro de Adelaide: seu olhar é um “ver-se”, no sentido de ter uma visão externa de si e do Recife, um imaginar-se a partir de um recanto profundo, particular. A escritora que remonta vivências imediatas, flagrantes mesmos dos dias, agora chega com uma fotografia mais suspensa, produtora de sentidos e de esquecimentos, sob uma edição que não perde o humor, a autoironia, mas se organiza como técnica de resguardar aquilo que a forma eticamente. Quando, agora, leio os seus textos, me vem um certo espaço estético com composições específicas e saturação naturalista, como suas fotografias. E a fotografia suscita palavras que parecem procurar o percurso de um texto qualquer já escrito por ela.
Adelaide Ivánova escreve. E agora o texto se forma daquilo que bradam as fotografias. Palavras flutuando entre imagens que são concisas, como pedras repousadas em um leito, de feição arredonda, trabalhadas pelo tempo, pela água. Leio-a para invocar uma voz artística, as novidades que remontam. Em um tempo no qual a realidade não se deixa atravessar, nos resta ouvir os artistas desbravarem novos sentidos sobre aquilo que até já tem significado, mas por procedimentos que fazem surgir excessos, criam novas possibilidades, deixam o mundo denso, mas permeável. De onde é possível, aí sim, se banhar nas águas do real.
Uma forma de conhecer o livro é no Vimeo de Joerg Colberg, o editor do site Conscientious: https://vimeo.com/133290131
[1] Essa é uma ideia que encontro em Bourdieu, “falar em história de vida é pelo menos pressupor – e isso não é pouco – que a vida é uma história”.