Fiquei pensando muito no que leva alguém a rasgar fotografias, como aconteceu com as imagens que Rubens Fernandes encontrou e acolheu em sua coleção (quem chegou agora, tem que ler o post anterior). Uma maneira de responder seria pensar às avessas o que leva alguém a produzir imagens. Arbitrariamente, pensei em três possibilidades ligadas ao que poderíamos chamar de “pensamento mágico”, “pensamento simbólico” e “pensamento burocrático”. Em cada um deles, e sucessivamente, existe um nível menor de vinculo entre a representação e o mundo, portanto, também um nível menor de afetividade envolvida.

Arquivo pessoal.
O pensamento mágico é uma categoria clássica. Nele, existe uma sobreposição entre a representação e o mundo: pronuncia-se habilmente um nome e aprisiona-se o ser denominado; manipula-se uma peça de roupa ou um chumaço de cabelo para afetar a vida de seu dono; espeta-se um boneco para ferir o corpo verdadeiro. Esse é considerado um modo de pensamento primitivo, mas que se resgata em qualquer tempo a partir de relações fetichizadas (enfeitiçadas) que podemos construir com as coisas: quem nunca nunca guardou carinhosamente a foto de alguém que ama, como se cuidasse da pessoa fotografada? Aqui, é fácil imaginar o contrário: quantos já não picotaram essa mesma imagem porque essa pessoa não merecia o carinho que lhe era dedicado?

Memento Park, Budapeste. Fragmento da estatua de Stalin, destruída em 1956. Atualmente, o parque acolhe as esculturas que foram imediatamente retiradas de todo o país, após a queda do regime comunista em 1989.
No pensamento simbólico, guarda-se alguma diferença entre a representação e o mundo, a primeira é uma via de expressão sobre o segundo. Os cristãos, para não se confundirem com as comunidades pagãs (marcadas pelo pensamento mágico), se esforçaram para afirmar a distinção entre a imagem de Deus que cultuavam e o próprio Deus que, aí sim, adoravam. Mas aqui está situado um amplo universo de possibilidades, com a implicação de níveis diversos de afetividade: a aliança no dedo que afirma o compromisso com alguém, o monumento que lembra um episódio ou personagem da história de um país, a roupa que sugere o pertencimento a uma geração. São rituais da cultura que garantem a construção das identidades individuais e coletivas. Podemos imaginar que, às vezes, essa construção exija algumas destruições, uma negação que é em si simbólica: sumir com a aliança de um casamento fracassado, recusar um emblema patriótico associado à repressão política, doar solenemente a roupa que ligava alguém a uma idade que se deseja superar. Mesmo o cristianismo teve que destruir às vezes suas imagens para demarcar sua negação ao paganismo idólatra. Não que seja óbvio, mas podemos pensar que as mesmas imagens que participam de um ritual de memória podem ser convocadas para participar de um ritual de esquecimento.
No pensamento burocrático, as representações estão ligadas a seus objetos pela simples força de um poder, sem qualque traço afetivo. É assim que o número do PIS representa o trabalhador, um uniforme representa uma escola, um carimbo representa certo direito do cidadão. Signos como esses podem ser descartados sem qualquer solenidade, porque estão muito fracamente ligados ao que representam: ninguém sofreria se abolissem o PIS. Mas vejam, para o poder fascista tudo pode ser tratado como questão burocrática, a arte, o conhecimento, até mesmo a vida pode ser descartada quando não demonstram utilidade e adequação à ideologia imposta, a única realidade que reconhece. Algumas imagens são usualmente tratadas de modo burocrático: a que o seguro fez do seu carro amassado, aquela em que você aparece no casamento da filha da prima que você nem chegou a conhecer, ou todas as fotos que vão pro lixo com o obsoleto jornal de ontem. Essas imagens são destruídas sem qualquer solenidade, culpa ou explicação.
A partir desse raciocínio, podemos tentar inventar uma história para as fotos rasgadas da coleção do Rubens.
Elas podem ter sido destruídas num surto de fúria, típico de quando um laço afetivo profundo é rompido: por exemplo, quando alguém se sente traído pelo melhor amigo, quando uma “Capuleto” se casa com um “Montechio”, quando uma esposa é vítima de violência física ou moral por parte do marido. Aqui, o ódio que move a destruição das imagens é um sentimento tão verdadeiro quanto o amor que garantiria sua produção e sua preservação. Há portanto um sentido. Mas não parece ser esse o caso. Uma ação passional desse tipo está normalmente associada a um ou outro indivíduo específico, não a toda uma comunidade, e levaria à sua exclusão abrupta, a uma destruição violenta, não ao gesto quase sistemático de rasgar as imagens como vemos aqui.
Elas podem ter sido destruídas num ritual íntimo de libertação: alguém que, em devoção ao novo amor decide romper todos os vínculos com os amores antigos; alguém que, tendo cumprido o luto pela morte de um ente querido, deseja smplesmente seguir em frente; alguém que assume definitivamente as raízes com um novo país que não aquele em que nasceu. Aqui, o ritual de esquecimento tem um ônus, mas também um ganho afetivo, perde-se algo para se conquistar algo. Portanto, também tem algum sentido. Como o gesto parece visar toda uma família, ou mais, a toda uma comunidade, poderíamos pensar: será então que alguém da quarta ou quinta geração de uma família japonesa teria desejado se libertar dessas raízes para se tornar brasileiro? Difícil imaginar algo assim. Isso só faz sentido quando a história impõe algum antagonismo: pode haver motivos para um judeu não reconhecer sua origem alemã; para um africano ou latino-americano não se identificar com a história ligada à violência de seus antepassados colonizadores, para um ucraniano não se sentir parte da União Soviética, coisas assim. Mas a história do Brasil está profundamente vinculada à presença de seus imigrantes. Reconhecer a origem estrangeira apenas afirmaria uma história tipicamente brasileira. E, como disse o Rubens, aquelas imagens são representativas dessa passagem cultural.
Tristemente, o que resta é uma razão burocrática para o descarte. Os rasgos sistemáticos parecem produzidos por um gesto quase mecânico exercido sobre algo já desprovido de sentido. Como um escritório que coloca “velhos papéis” na picotadora antes de mandar para reciclagem. Ali, já não se reconhecia uma memória, não havia uma causa contra a qual lutar ou uma origem da qual se libertar. Já não havia sequer uma imagem. Não há pessoas, apenas formas que compõem uma idéia vaga e abstrata de família, mais ou menos como a imagem de uma planta representa sua categoria vegetal num livro escolar. O único aspecto ritual que existe na ação de rasgar deste modo os documentos – sejam os papéis do escritório ou estas fotografias – parece ser a afirmação da propriedade privada (a privacidade): não se dá a terceiros o direito de buscar sentidos naquilo que seu proprietário decretou como insignificante. Portanto, rasgar essas fotos era uma maneira de evitar qualquer outro interesse possível sobre as imagens, evitar que pudessem pertencer a uma coleção.
Mas a memória tem sua redenção nesse gesto de reapropriação afetiva de imagens de pessoas anônimas, feito por este “colecionador de olhares desconhecidos”. Contra este gesto afetivo, o gesto de destruição das imagens se mostra impotente, porque o que motiva a coleção não tem nada a ver com a possibilidade de ser o novo proprietário de uma antiguidade bem preservada. Tem a ver com um olhar que aprendeu a se alimentar tão espontâneamente de memórias que o valor material do objeto se torna secundário. Sob essa perspectiva, o gesto burocrático e destrutivo apenas torna essas imagens ainda mais carregada de um sentido potencial, porque é uma memória sobrevivente.
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