Há algumas semanas, foi divulgado um retrato feito no século XIX de um certo Sr. Arnauldet, e que deixa aparecer ao fundo um intruso que foi identificado como sendo Baudelaire. Foi Serge Plantureux, marchand de fotografias de Paris, quem adquiriu essa imagem e, a partir de alguns dados levantados na Biblioteca Nacional da França, convenceu-se de que eram grandes as chances de se tratar mesmo daquele poeta. O modo hesitante como espia a performance do fotógrafo e do fotografado denuncia sua consciência de estar onde não deveria. Resta um corpo fugidio e difuso, como o de um fantasma que não se deixa apreender com precisão pela câmera (como vemos na longa tradição de fotografia de espíritos e fantasmas). Mas se olharmos bem para o que persiste de expressão naquele corpo, reconheceremos uma figura tímida, curiosa e desejante.
Há uma fórmula do cinema de terror que é mais ou menos assim: uma família – pai, mãe, um ou dois filhos, um cachorro – se muda para um casarão encrustado numa paisagem bucólica. A casa custou uma pechincha ou foi uma herança inesperada, e só precisa de alguns reparos. Mas o sonho da família é perturbado por vozes estranhas, depois, por aparições e fenômenos sobrenaturais que, até certo momento, apenas os filhos percebem. Após muitos estragos, descobrimos que o fantasma é também o de uma criança que, em vida, se sentia deslocada diante dos amigos e da família. Ela só queria brincar, mas a rejeição acentuava cada vez mais seus traços estranhos. Inevitavelmente, seu fim é trágico e violento. Isolada ainda mais pela morte, ela continua querendo pertencer ao mundo. Ainda quer apenas brincar, mas só consegue fazer isso da forma assustadora que é própria dos fantasmas.
Baudelaire, esse enfant terrible, tem assombrado a história da fotografia. É dele que lembramos quando queremos demonstrar o quanto essa técnica foi mal recebida por intelectuais e artistas do século XIX. Para isso, recorremos sempre a alguns poucos fragmentos de um mesmo artigo (O público moderno e a fotografia), que parecem suficientes para apontar a violência de sua investida. O alvo de Baudelaire não é propriamente a fotografia. Ela é apenas sintoma de um problema maior que ele observa: o gosto pelo banal e o recurso a um realismo vulgar que se manifesta nas pinturas que ele encontra no Salon de 1859.
Na prática, o que ele ironizava era sobretudo o discurso que ajudava a difundir a fotografia e que encantava as multidões:
“Creio na natureza e creio somente na natureza (há boas razões para isso). Creio que a arte é e não pode ser outra coisa além da reprodução exata da natureza (um grupo tímido e dissidente reivindica que objetos de caráter repugnante sejam descartados, como um penico ou um esqueleto). Assim, o mecanismo que nos oferecer um resultado idêntico à natureza será a arte absoluta”. Um Deus vingador acolheu as súplicas desta multidão. Daguerre foi seu Messias. E então ela diz a si mesma: “Visto que a fotografia nos dá todas as garantias desejáveis de exatidão (eles crêem nisso, os insensatos), a arte é a fotografia”.
Baudelaire não via um destino promissor para uma imagem que era orgulhosamente apresentada como emblema dos progressos técnicos: “que ela retorne ao seu verdadeiro dever, que é o de ser a serva das ciências e das artes, a mais humilde das servas”. De fato, a fotografia se afirmava no momento certo, mas com os argumentos errados. E o que nos assombra em Baudelaire é, no final das contas, o modo como ele expõe o desconforto histórico que marca esse lugar demasiadamente pequeno que foi dado à fotografia.
Tudo o que é tensionado pela história é potencialmente fantasmagórico. Uma imagem é muito mais que sua emulsão, como uma antiga casa é mais do que suas paredes. Essas superfícies ocultam camadas de tempo que são inapreensíveis e que retornam como assombração quando são recalcadas. É pelos velhos retratos pendurados nas paredes das casas que os antigos habitantes observam os recém chegados, como sugeria Scooby Doo em suas histórias de fantasmas para crianças. É pelas fissuras das imagens que um tempo se comunica com outro, como sugere Didi-Huberman, em suas “histórias de fantasmas para adultos” (é assim que ele se refere à coleção de imagens organizada por Aby Warburg).
Esse objeto fantasmagórico da memória só nos apavora quando é rejeitado em sua própria casa. É a partir dessa constatação que alguns daqueles filmes de terror trazem a possibilidade de redenção, tanto do fantasma quanto dos novos moradores: a alma penada encontra finalmente seu descanso assim que é compreendida em seu drama e acolhida no seio da nova família.
Quando o elegemos como inimigo da fotografia, tornamos Baudelaire um fantasma em sua própria casa: a modernidade. Ele foi amigo íntimo de dois dos melhores fotógrafos de franceses, Etienne Carjat e Nadar, e dedicou a este último o poema “O sonho de um curioso”. Deixou-se fotografar uma meia dúzia de vezes, e também pediu à sua mãe que lhe enviasse um retrato, alertando que era preciso saber escolher bem o estúdio: “muitos fotógrafos, mesmo alguns excelentes, têm manias ridículas: eles tomam por uma boa imagem aquela em que todas as verrugas, todas as rugas, todos os defeitos, todas as trivialidades do rosto se tornam muito visíveis, muito exageradas: quanto mais dura é a imagem, mais satisfeitos eles ficam”.
Não soubemos ouvi-lo. Depois, gastamos mais de um século tentando desconstruir aquelas “garantias desejáveis de exatidão” que os fotógrafos prometiam e das quais Baudelaire soube precocemente duvidar (“eles creem nisso, os insensatos”). Também não soubemos lidar com a expressão melancólica que trazia em alguns retratos – assim como em sua literatura –, esse olhar pouco acomodado ao fluxo das novas imagens e da nova metrópole. Ele sabia estar um pouco dentro e um pouco fora dos movimentos da multidão, e assumia diante dela certo descompasso para extrair dos solavancos suas imagens mais representativas e críticas. Sua forma de acolher tudo aquilo que pertencia ao seu tempo não era nem a recusa nem o deslumbramento. Exatamente por isso ele foi moderno.
Baudelaire também queria brincar. No poema dedicado a Nadar, ele fala dos sentimentos ambíguos gerados pela lente de uma câmera que está prestes a se abrir (é talvez essa mesma ansiedade que o fez aparecer, por detrás de um fundo, num retrato alheio): “eu era como uma criança ávida do espetáculo, odiando a cortina como quem odeia um obstáculo”. Queria brincar, mas era estranho demais àqueles que dominavam esse jogo, porque não trazia no rosto a mesma expressão de euforia.
Tanto faz se aquele intruso era ou não Baudelaire. Potencialmente, esse vulto tremido é um retrato muito fiel de alguém que ocupava um lugar impreciso em seu tempo e que, por ter sido colocado forçosamente à margem dos debates sobre a fotografia, retornará de vez em quando como fantasma.
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