Nordeste: representação e virtualidade*

[09.set.2013]

Existe hoje um claro esforço para repensar as representações tradicionais do Nordeste. Uma alternativa tem sido investir na ampliação de temas e formas de abordagem de seus personagens e de suas paisagens. Outra, é revisitar os modelos históricos de construção da imagem para expor seus limites.

Se olharmos para os registros que ilustram o estudo feito por Roquette Pinto, no inicio do século XX, encontramos os “tipos brasileiros” – dentre eles, o do sertanejo – fotografados segundo o método de catalogação criminal do francês Alphonse Bertillon, que se tornou recorrente nos estudos antropométricos. Ao construir a pose, centralizar o personagem, situá-lo à frente de um fundo neutro, buscar uma luz que preenche todos os detalhes de sua fisionomia, impor o rigor da pose, o cientista positivista acredita estar tocando objetivamente a realidade mais autêntica desses sujeitos.

Roquette-Pinto, Sertanejo (Xanthoderme), 1929

A fotografia contemporânea, tendo compreendido melhor seus limites, pode recorrer às mesmas estratégias da fotografia científica clássica para revelar seus artifícios, ou seja, para mostrar como esse sujeito é, em boa medida, negociado pelo método. É o que vemos na série Sertanejos, de Alexandre Severo. Ao ampliar o enquadramento da fotografia, identificamos a teatralidade implicada na construção do retrato, mesmo quando estamos falando de uma pose que chamaríamos de neutra. Mais precisamente, tal experiência ajuda a desconstruir essa pretensa neutralidade.

Alexandre Severo, 2010

Alexandre Severo, 2010

Com isso, expõe-se aquilo que há de virtualidade no retrato, ou seja, assume-se que a fotografia inventa em certa medida a paisagem e o sujeito que supostamente registra. Essa idéia é levada ao limite em outras experiências recentes.

vale do catimbau - brasil

Sinval Garcia, Vale do Catimbau, 2002

Sinval Garcia percorre o mundo, incluindo o Sertão, sem sair de um mesmo lugar, mais precisamente, seu laboratório, com papel velado e revelador. Trata-se, portanto, de um lugar que pertence à própria fotografia. Mais do que representar uma região específica, esse trabalho demonstra o quanto uma paisagem é construída também pelas referências que orientam nosso imaginário.

Admitindo que a fotografia encena em boa medida a identidade do sertanejo, a fotografia pode recorrer a estratégias para projetar essa identidade sobre um sujeito qualquer por meio da performance. É o que vemos em “Desejo Eremita”, de Rodrigo Braga. Ele parte de elementos relativamente recorrentes – o bode, o chifre, os ossos, a terra seca – para inserir-se nesse local. Busca representar uma identidade não pela síntese, mas por um ritual que contamina seu corpo com elementos da paisagem. Ele inventa pela encenação um modo de pertencer ao sertão, mas vive autenticamente em seu corpo o personagem que cria.

Rodrigo Braga, Desejo Eremita

Rodrigo Braga, Desejo Eremita

Rodrigo Braga, Desejo Eremita

Rodrigo Braga, Desejo Eremita

Trabalhos como esses nos ajudam a entender o que já havia de virtualidade em fotografias científicas como as de Roquette-Pinto: o que temos ali é não mais do que um homem abstrato, inventado pelo método, capaz de absorver o discurso que a ciência quer projetar sobre ele.

São propostas que trazem em si um gesto às vezes radical, irônico, violento, crítico e que, aparentemente, inviabilizam a compreensão da fotografia como instrumento de pesquisa antropológica. Isso será verdadeiro apenas se estivermos apegados a noções muito ortodoxas de testemunho e documento.

Essas experiências nos trazem a oportunidade de recobrar a consciência sobre os artifícios implicados na imagem, critica necessária a todo discurso científico. Colocada sob suspeita, a fotografia redefine seu contrato com o olhar,  e encontra as condições para retomar em bases mais críticas seu poder de referenciar o mundo.

Trata-se de assumir que todo documento e todo testemunho é produto de um acordo negociado no âmbito da cultura. Revelar aquilo que nela há de construção não invalida o uso da imagem pela ciência, ao contrário: ao revelar a opacidade da imagem, os métodos que definem seu uso se tornam mais transparentes.

O excesso de confiança ou desconfiança parece resultar de uma velha oposição entre cultura e natureza: ou fantasiamos uma neutralidade da técnica para nos convencer de que o mundo se manifesta por si mesmo na imagem ou, ao afirmar as determinações da técnica, denunciamos a redução do mundo à imagem, à encenação, ao artifício, à condição de simulacro. Superada essa oposição, temos condições de buscar os potenciais do mundo que só a imagem ajuda a revelar, e também o modo como a imagem é parte daquilo que chamamos de realidade.

Alexandre Severo, Sertanejo, 2010

Alexandre Severo, Sertanejo, 2010

Nesta imagem de Alexandre Severo, é nítido o fato de que a imagem não é mais um elemento exterior à cena. De um lado, é ela assume a tarefa de representar a intenção votiva do fiel. De outro, “Padre Siso” está plenamente consciente do quanto sua autoridade depende da aproximação à figura emblemáica do “Padim Ciço”, construída pela pose, pela indumentária, pelo nome, mas pelas tantas imagens que faz circular com seu nome, conforme conta Alexandre Severo. Enquanto sonhamos em usar a técnica para revelar uma identidade pura de um lugar, ou enquanto riscos de a imagem anular a identidade desse lugar, o Sertão foi se transformando e as imagens foram se tornando parte dele.

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* Este texto é um resumo da palestra proferida no V Theoria, evento realizado pela Universidade Federal de Pernambuco e pela Fundação Joaquim Nabuco, em Recife (agosto de 2013).

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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