Falar de imagens sem compreendê-las: Apichatpong Weerasethakul

[28.set.2015]

Escrever tem a ver com o esforço de compreender aquelas imagens que persistem quando o olhar já seguiu adiante. Ou, antes disso, a escrita é parte desse exercício de permanência das imagens. A compreensão é só um pretexto. Quantas vezes eu fiquei parado diante de uma página em branco sem saber por onde começar… Não havia nada a ser dito, o que havia era apenas a própria imagem que persistia.

Depois de um tempo, a linguagem pode chegar a desenhar a topografia desse lugar de permanência. Assim eu vejo a crítica: o desenho mais ou menos arbitrário de um espaço que se deseja compartilhar, portanto, uma imagem que se sobrepõe a outra imagem. Mas, às vezes, a página em branco resiste e é preciso admitir que nem isso a escrita consegue fazer.

Tudo isso porque queria dizer alguma coisa sobre um filme, Cemitério do Esplendor (2015), do diretor tailandês – de nome impronunciável – Apichatpong Weerasethakul. Já havia havia escrito sobre seu Tio Boonmee, que pode relembrar suas vidas passadas (2010). Desta vez, não achei uma forma. Fiz então o que faria qualquer curioso: busquei referências.

Já havia lido a sinopse, que reproduzo aqui para me livrar da difícil tarefa de decidir o que dizer e o que não dizer de uma história que permanece cheia de lacunas:

Soldados com uma misteriosa doença do sono são transferidos para um hospital provisório instalado em uma antiga escola abandonada. Jenjira torna-se voluntária para tratar de Itt, um belo soldado que ninguém vem visitar. No hospital, ela faz amizade com a jovem médium Keng que utiliza os seus poderes para ajudar os parentes a se comunicarem com os homens adormecidos. Um dia, Jenjira encontra o diário de Itt preenchido de palavras e desenhos estranhos. Talvez haja uma conexão entre a síndrome enigmática dos soldados e o mítico local em que o hospital se encontra. A magia, a cura, o romance e os sonhos misturam-se no frágil caminho de Jenjira em direção ao conhecimento profundo de si própria e do mundo à sua volta.

É uma síntese bem construída mas que, se for lida a partir do nosso cinema de fantasia, promete uma solução que nunca chegará da maneira como esperamos. No filme, os elementos mágicos simplesmente habitam aquela realidade.

No mais, encontrei comentários hesitantes sobre a religiosidade tailandesa e tentativas forçosas de interpretar algumas simbologias pontuais. Algumas pistas são recorrentes: seus soldados apaziguados pelo sono podem ser uma resposta à repressão militar que tomou conta de seu país recentemente. Por fim, achei a voz humilde e solidária do crítico José Carlos Avellar:

Se aceitarmos a hipótese de gostar de um filme sem exatamente compreender o que ele nos fala, por falta de conhecimento da cultura que inspirou sua invenção, chegamos perto da sensação provocada por Cemitério do esplendor, de Apichatpong Weerasethakul, exibido em Cannes na mostra Un certain regard. Nele, estamos na fronteira entre os vivos e os mortos, entre o que percebemos nos sonhos e o que vemos quando despertos.

Esse pequeno texto pode parecer insuficiente como crítica, mas é de uma honestidade perturbadora. A honestidade sim, é um requisito fundamental para a crítica. A compreensão, um tanto menos.

Assumindo isso, posso ao menos tentar fruir os próprios limites que o filme me coloca. Assumo que a distância entre o meu mundo e o de Weerasethakul é o que impede a compreensão: não sei nada sobre a história, as paisagens, os costumes, a religiosidade tailandesa. E posso assumir a experiência da distância como algo que o filme oferece. Não apenas a distância, mas uma certa distância, por si mesma singular e difícil de situar.

Lembro de quando o cinema iraniano não me parecia cinema: sentia a força das imagens, mas os diálogos, a montagem, a narrativa, a duração das cenas não faziam sentido. Com o tempo, fomos negociando um lugar no ocidente para essas imagens: de um lado, expandimos nossa concepção de cinema e, de outro, diretores como Abbas Kiarostami (Cópia Fiel, 2010) ou Asghar Farhadi (A Separação, 2011) se esforçaram para acolher um pouco mais os olhares formados por Hollywood, sem poupá-los totalmente do estranhamento.

Cemitério do Esplendor nos confronta com uma alteridade forte, mas não exatamente imaculada. O diretor mostra um território em transformação. Mas, assim como um grupo de crianças insiste em jogar bola num campo de futebol transformado em canteiro de obras, Janjira ainda é capaz de passear pelos cômodos de um palácio ancestral que já não se enxerga. Nesse lugar, as imagens também persistem.

Weerasethakul não é um nativo que foi presenteado com uma câmera, ele constrói habilmente essas imagens. Ele teve parte de sua formação nos Estados Unidos e transita com fluência pelos festivais internacionais. Todos os comentadores destacam o modo como seu cinema abre espaço para elementos tradicionais da cultura de seu país. Mas esse filme está repleto de referências ao ocidente.

Janjira é uma figura de uma benevolência que só parece possível em algum canto esquecido do planeta. Mas ela fala inglês e vive com um soldado americano aposentado que conheceu pela internet. No altar de um templo onde ela reza com seu marido, duas divindades femininas são representadas por esculturas que lembram manequins de uma loja, reproduzidas também por uma fotografia na parede. Quando essas entidades encarnam diante Janjira, antes de revelar quem são, mostram a ela as blusas que acabaram de comprar, como se chegassem de um shopping center. Por fim, uma cena que se repete tantas vezes no filme: para oferecer conforto aos soldados tailandeses mergulhados naquele sono misterioso, o hospital implanta uma tecnologia dizem ter sido testada com sucesso pelos americanos na guerra do Afeganistão: luminárias que ornamentam aquele ambiente rústico com uma variação de cores fortes, que parecem ter sido desenhadas por um artista pop.

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Aqui reside o maior estranhamento. De um lado, os elementos estrangeiros parecem atravessar os hábitos mais tradicionais sem perturbá-los. Os personagens não os repudiam, ao contrário, lidam com eles com a mesma naturalidade que manifestam diante de qualquer outra aparição. De outro, esses elementos nem se acomodam e nem desaparecem nas cenas. No filme, esses elementos contrastantes convivem com uma delicadeza surpreendente.

Se sou incapaz de interpretar os elementos que compõe a narrativa do filme, posso ao menos avançar um pouco mais naquilo que dele persiste. Cemitério do Esplendor transborda a experiência de uma certa distância e, com ela, também um sentimento de tolerância: a beleza de conviver com aquilo que não se pode assimilar nem compreender totalmente. Se os personagens ainda são capazes de enxergar seus sonhos por meio de dispositivos que lhes são alheios, podemos fazer o mesmo por meio de um cinema que não é o nosso.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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