Sobre pequenas pregnâncias: Coração de Cachorro, de Laurie Anderson

[08.fev.2016]

Difícil saber do que trata o filme “Coração de Cachorro”, de Laurie Anderson. Ela parte de coisas banais, dessas que vemos exaustivamente nas redes sociais: relatos intimistas e imagens de cãezinhos. Deve haver um amor sincero por trás de cada pet publicado no Facebook. E cada fato banal pode ser a fração de uma urgência verdadeira que se gostaria de expressar.

O problema das redes não é a irrelevância dos temas: um bom cronista sabe arrancar o universal de fatos corriqueiros. Não é a falta de vínculo com aquele que fala: somos capazes de dedicar uma boa dose de fantasia a um postal encontrado num antiquário ou a um pedaço de conversa ouvido no metrô. Também não é seu caráter fragmentário: a montagem é o idioma mesmo em que a modernidade nos alfabetizou. O problema está nas condições de narração e de escuta dessas pequenas histórias: as telas que lhe servem de suporte quase nunca duram o suficiente para convocar o fragmento anterior e para ecoar no que vem adiante. Aí, uma grande diferença: Laurie Anderson sabe dar pregnância às suas imagens.

Em certo momento, ela questiona o imenso aparato montado nos Estados Unidos, no meio de um deserto, para acumular informações sobre cada cidadão. Ali não há mais sujeitos e, portanto, não há mais histórias. Não é importância dos fatos que garante uma narrativa. É a capacidade de dar-lhe um lugar próprio e de relacioná-los. É isso que vemos no filme.

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Seus relatos permanecem fragmentários. Personagens e temas aparecem e desaparecem, como associações livres que ficam disponíveis para talvez fazer sentido em algum lugar mais adiante. Vez ou outra, as coisas se encontram e se amarram como imagem. Por exemplo: a rat terrier é uma raça com forte instinto vigilante. Mas o olhar de sua cadela não será o mesmo quando descobre pela primeira vez numa viagem os falcões que mergulham do céu para atacá-la. Nesse olhar, Laurie Anderson entenderá o sentimento deixado pelo 11 de Setembro: agora, o perigo chega também do céu e o medo passa a ter um novo espectro.

Para falar de grandes questões da realidade, ela prefere sempre partir de seus pequenos sintomas. Por isso, talvez, sua predileção por essa filosofia das ações cotidianas que é o budismo. Quando preciso, recorre à grande erudição ocidental, mas sempre desconstruída por certa dose de irreverência. É assim que ela relaciona os avisos colocados em lugares públicos para prevenir o terrorismo (se vir algo, diga algo!) com o pensamento de Wittgenstein (só existe para o conhecimento aquilo que se pode representar pela linguagem), para entender a parcela do terror que próprio aviso ajudava a inventar.

Mesmo que haja uma primeira pessoa forte e um tom intimista, o filme não é sobre Laurie Anderson. A maioria de nós chega ao cinema sabendo duas ou três coisas sobre a mulher de Lou Reed. E saímos conhecendo episódios e pensamentos esparsos que poderiam ser de qualquer pessoa. Quase nada sobre sua obra, a não ser a obra que o próprio filme constitui, que inclui desenhos, fotos, remontagens de suas memórias, algumas músicas e um texto carregado de imagens, que pensa através de imagens.

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A cadela de Laurie Anderson conduz parte das histórias, mas não é simples entender seu lugar. O filme não é sobre ela. E ela tampouco cumpre um papel apenas simbólico: a cadela não é um elemento de uma história paralela de onde se tira uma moral. A cadela existe na vida da artista e crava nela os sentimentos a partir do qual olhará para tantos outros temas. O papel da cadela é empático: ela produz, por uma espécie de sintonia afetiva, as condições para falar da perda, a dor, da política, da arte e da felicidade.

Recorri ao Google para lembrar do nome da cadela. Arrisquei Lullaby, mas era Lolabelle. Além da semelhança sonora, Lullaby faria todo sentido. O tom de Anderson é o de quem nos conta uma história com a luz apagada, com voz suave para não espantar o sono, mas com entonação dramática o suficiente para atiçar os sonhos. O filme é de fato uma espécie de compilação de histórias que foram cantadas para que tantas partidas pudessem ser encaradas com serenidade: sua cadela, sua mãe, Gordon Mattta-Clark, seu grande amigo, e Lou Reed, o companheiro de toda vida de quem ela fala apenas na dedicatória final. O canto é para os partem e os que ficam. Ela conta que, assim que Matta-Clark morreu, dois monges budistas presentes diziam próximo ao seu ouvido o caminho a seguir. Mas, antes disso, era ele que lia no hospital histórias para os amigos que ficariam.

O filme reencena alguns fatos e acrescenta muitos efeitos às imagens. Os artifícios estão também nas situações vividas: em gravações domésticas, vemos Lolabelle pintando, esculpindo e tocando piano, coisas graciosas que foram ensinadas por uma adestradora de cães e que também poderíamos encontrar nas redes sociais. Mas também essas imagens forjadas têm suas pregnâncias: de um lado, elas ajudam Laurie Anderson a responder com leveza a acontecimentos dramáticos, de outro, ela sempre se vincula profundamente a tudo o que inventa. Dizer que a imagem é pregnante é dizer que está prenhe de algo. No sonho que abre o filme, ela dá à luz a sua cadela. Ela se comove e diz que vai amá-la par sempre. Mas sabe que isso só foi possível por causa de uma artimanha: ela própria teria costurado Lolabelle a seu ventre para poder pari-la. O filme produz seus duplos, suas simulações e seus espetáculos, mas não sem antes atá-los profundamente à história da artista.

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Esse é provavelmente um filme classificado como documentário. Mas é uma fábula. Ele fala de muitas coisas e não é sobre coisa alguma. É uma coleção quase aleatória de memórias muito densas, e é uma amostragem muito coesa de um princípio de leveza que se pode dar à vida. Algumas de suas sequências teriam força para serem projetadas como loop, em silêncio, numa galeria de arte. Mas o filme também poderia ser assistido de olhos fechados.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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