Há uma zona de sombra na história da fotografia brasileira. Ela se estende desde a segunda década do século XX até os anos que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial. Uma lacuna que só recentemente começa a ser preenchida com algumas pesquisas acadêmicas, uns poucos livros e a recuperação e organização de escassos acervos. Um esquecimento que corresponde a toda uma geração de fotógrafos, oriundos da Europa Central, que vêm dar ao Brasil na condição de refugiados ou imigrantes que procuram escapar da crise econômica e da perseguição política ou racial.
Os fotógrafos que protagonizaram este capítulo esquecido nunca formaram um movimento. Espalharam-se pelo país, trabalhando como autônomos, abrindo seus próprios estúdios ou prestando serviços a órgãos públicos. Ao contrário de franceses como Jean Manzon, Marcel Gautherot e Pierre Verger, cuja integração e o reconhecimento veio mais cedo, a grande maioria destes alemães, austríacos, húngaros e lituanos permanece praticamente ignorada. E sua obra, mais ainda. Nos últimos dez meses estive trabalhando com minha amiga e parceira Márcia Mello no arquivo de um dos membros mais brilhantes desta geração, o fotógrafo austríaco Kurt Klagsbrunn (1918-2005). Autor de uma obra monumental em todos os campos da atividade fotográfica (seu acervo tem mais 120 mil documentos, entre imagens – negativos e positivos –, manuscritos e impressos), jamais teve seu trabalho apresentado em livro.
Kurt nasceu em Viena, em uma família judia de classe média. Seu pai, Leopold, era químico, dono de um negócio de processamento e comércio de carvão. Poucos meses depois de iniciar seus estudos na faculdade de medicina, a Áustria é anexada pela Alemanha nazista. A família Kalgsbrunn está entre aquelas que conseguem escapar. Em março de 1939 desembarcam no Brasil – país que lhes deu abrigo – mas o jovem não pode mais retomar os estudos. Vai então dedicar-se à fotografia, sua paixão de adolescente. As câmeras fotográficas da família haviam sido confiscadas, mas Kurt, então com 20 anos, trouxe na bagagem um manual de fotografia, editado naquele mesmo ano em Harzburg, na Alemanha, Die Neue Foto-Schule (a “nova escola fotográfica”), duas câmeras (uma Super-Baldina e uma Leica, provavelmente adquirida no mercado negro), e o olhar educado na “nova visão” do modernismo europeu.
A primeira visão da Baía de Guanabara, com o Pão de Açúcar projetando-se sobre o mar, nunca será esquecida. Neste mesmo dia, escreve em alemão, na agenda: “primeiro banho de mar”. A Praia Vermelha se tornará uma de suas locações favoritas – é lá que fotografa, por exemplo, a Miss Brasil de 1949.
Nos primeiros anos, o laboratório e o estúdio improvisados funcionam na casa da família, em Laranjeiras. Mas dois anos depois, sua carreira começa a decolar. Faz publicidade, lançando produtos como Gillete e Coca-cola e, no final do ano começa a trabalhar como correspondente do grupo Time-Life no Brasil. Esse vínculo dá ao fotógrafo oportunidade de cobrir os bastidores da política e permite que viaje para todos os cantos do Brasil, pautado pelas revistas norte-americanas. E como trabalhou também para a Revista Sombra, considerada a mais chique da imprensa brasileira, seus retratos da vida íntima das celebridades e das festas de gala das elites cariocas e paulistas são primorosos.
Porém, de todo o material produzido por Kurt Klagsbrunn, nos primeiros anos de sua carreira, o mais raro diz respeito às atividades do movimento estudantil. Engajado na luta anti-fascista, Kurt trabalha seguidamente para a União Nacional dos Estudantes. Percorrendo seu arquivo, podemos observar as manifestações organizadas pelos estudantes em prol da entrada do Brasil na guerra e em apoio aos pracinhas brasileiros. Permaneceu ao lado dos estudantes nos movimentos pela redemocratização do Brasil (as manifestações pela Anistia e pela Constituinte em 1945), produzindo em virtude disso um registro histórico valioso.
O livro que organizamos cobre apenas as atividades de Kurt na década de 1940 e culmina com uma reportagem sobre a Copa de 1950, que ele cobriu para a Life, de dentro do gramado do Maracanã. Além do valor documental e artístico destas imagens – quase 300, selecionadas entre as dez mil que produziu no período –, elas guardam o frescor da descoberta do Brasil por um jovem fotógrafo europeu. Testemunham ainda o processo pelo qual imigrantes que foram obrigados a abandonar tudo o que tinham em seus países de origem, encontram os meios para reconstruir seus laços afetivos e profissionais na terra que lhes serviu de refúgio.
O livro Refúgio do Olhar; a fotografia de Kurt Klagsbrunn no Brasil dos anos 1940, editado pela Casa da Palavra, vai ser lançado no Rio de Janeiro no dia 11/03, na Livraria Travessa do Shopping Leblon. Em São Paulo, o lançamento será em abril (divulgaremos o local). O acervo de Kurt Klagsbrunn está sob a guarda de Victor e Marta Klagsbrunn, sobrinho do fotógrafo e sua esposa, que coordenam um projeto de proteção e difusão de sua obra. Sem o empenho e a confiança deles, este livro não teria sido possível.
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