Imagens animadas pelas sombras*

[15.abr.2013]

Homem mergulhando no lago Atitlan, em Solola na Guatemala.

Cia de Foto, Prefácio, 2012

Esquecemos o quanto, um dia, a caverna foi acolhedora. Escura, ela era misteriosa e convidativa, assim como a paisagem fora dela que, mesmo iluminada pela luz do dia, não se revelava por completo. Se era preciso percorrer longas distâncias para buscar meios de sobrevivência, era necessário reencontrar a caverna, pelo teto que ela oferecia, mas também pelas paredes: com as imagens que nelas se desenhavam os homens construíam seus rituais e negociavam com a natureza aquilo que sua luz não permitia enxergar. Tanto na claridade quanto na penumbra, pelo lado de dentro ou de fora da caverna, havia um mundo imenso a percorrer.

Atiçadas pela luz do fogo, essas imagens ganhavam movimento graças aos relevos das rochas. Emolduradas pela sombra, elas ganhavam um contorno mágico que transportava o olhar para além daquelas paredes. A luz permitia reconhecer a semelhança entre aqueles desenhos e as coisas, já a escuridão destacava a imagem de sua superfície para fazê-las tocar o mundo. Juntas, luz e sombra animavam essas formas.

Nessas imagens que chamamos de primitivas já estavam anunciadas nossas potências, porque ali, diante delas, o espírito humano fora forjado (a tese aparece no documentário de Werner Herzog, A caverna dos sonhos esquecidos, 2011). Há, portanto, uma reciprocidade nessa relação: as imagens são criações humanas tanto quanto a humanidade é uma criação das imagens.

A penumbra continuou sendo o lugar das imagens por milênios. Se a luz é a condição física de sua visibilidade, é ali, onde elas se diluem na sombra, que seu espaço se embaraça de tempo, fazendo cruzar o olhar, a memória e a vontade, ou seja, presente, passado e futuro.

Um dia, a razão ofuscou essa origem e, da natureza, se esforçou por reter apenas a ordem que as próprias imagens ajudaram a intuir. Platão quis retirar o homem da caverna para conduzi-lo a um lugar metafísico onde a verdade repousaria plena e eterna. Com esse gesto, ele renega de uma só vez a escuridão e a imagem: na primeira, ele identifica a ignorância dos sentidos; na segunda, sua manifestação mais problemática e enganosa. Sob o pretexto de buscar formas estáveis por trás das aparências mutantes, acaba por rejeitar a própria natureza (physis).

Caberá a Nietzsche denunciar os artifícios da filosofia que, para contornar o desconforto da razão diante da inconstância das coisas, projeta a verdade para longe da vida dos homens. Ele não nega o valor dessa ordem que o pensamento projeta sobre a natureza, mas a verá como uma “ilusão” necessária, reconfortante e plástica. Ele valoriza a arte trágica dos gregos por sua capacidade de equilibrar polos antagônicos da realidade, representados entres os antigos pelas forças de Apolo e Dionísio. Temos assim, de um lado, a aparência apolínea, harmoniosa e amigável, que oferece aos homens parâmetros para traduzir seus desejos em planos e ações; de outro, a rebeldia de uma natureza dionisíaca que, se é instável e misteriosa, dá àqueles que dela se embriagam o prazer mais intenso (O surgimento da tragédia no espírito da música, 1871). O pensamento trágico quer reaproximar as belas formas, que se tornam visíveis pela luz, dessa verdade que o homem ao mesmo tempo teme e deseja, e que se manifesta nas sombras.

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Cia de Foto, Prefácio, 2012

Bem diferente da ascese platônica, essa dolorosa escalada em direção à luz que se pretende definitiva, o Zaratustra de Nietzsche traz da caverna sua sabedoria e, percebendo-se incompreendido pelos homens das praças públicas, a ela se recolhe novamente para buscar sua própria superação. Zaratustra ama o sol, mas é da entrada de sua caverna que contemplará melhor a sua força. Ele anseia encontrar homens que queiram experimentar suas potências (o “além do homem”). Mas foi preciso convida-los também à sua caverna para que, saindo dela, tivessem a alegria de vislumbrar por alguns instantes esse devir. Mesmo que pareça ser a antítese da luz que tanto ama, ele não teme a escuridão da caverna. Afinal, aprendemos com ele que o retorno (o “eterno retorno”) é parte do caminho de superação (Assim falou Zaratustra, 1883/85).

Nietzsche reconhece que aquela conquista dos gregos trágicos se perde na primazia da racionalidade. Aí reside a fragilidade da sociedade moderna. Resta perguntar: para onde a sombra se retrai quando a ciência propõe iluminar todas as dobras da natureza? Elas permanecem nos sonhos, seu lugar inalienável. É para lá que ainda retornamos depois de resolvidas as questões diárias de nossa sobrevivência. Mas elas transbordam ainda das frestas que encontram nos próprios artifícios que a razão inventou para aprisioná-las.

É em certas constâncias da natureza que o homem se apoia para constituir um saber produtivo. A técnica é uma espécie de pacto entre homem e natureza, que permite a ele apropriar-se de suas forças para operá-las de forma programada e controlada. Superestimada, a razão ofuscou a bilateralidade desse pacto e desdobrou-se num sentimento de onipotência. Daí decorrem alguns equívocos. Primeiro, o homem construiu a ilusão de que a natureza jogaria necessariamente a seu favor e o conduziria ao progresso, a um acréscimo constante de conhecimento, de poder e de bem-estar. Segundo, fez supor que a natureza, constrangida pela técnica, se entregaria por completo, dando objetividade a seus saberes e também às suas imagens.

Supomos que as imagens técnicas sejam produto dessa natureza domesticada e perfeitamente iluminada pela razão. Mas, seguindo suas próprias reminiscências, elas também retornam sorrateiramente à caverna. Raramente lembramos que o interior da câmara em que nossas novas imagens são forjadas ainda é escuro. Ela reproduz, numa versão moderna, sintética e portátil, aquelas paredes em que desenhamos nossas primeiras figuras. A diferença é que preferimos trazer suas imagens para fora, vê-las em plena luz, para dar a elas contornos estáveis e bem delimitados, como aqueles que a metafísica deseja atribuir a cada ser.

Ocorre que, pelo mesmo orifício que permite a entrada da luz, a sombra escapa para banhar generosamente as imagens de sonho. E a fotografia, que prometia oferecer uma representação precisa do mundo, se vê permeável aos afetos, aos desejos, aos mistérios. Esse suposto fracasso é, na verdade, a realização de uma vocação das imagens que a razão não dá conta de represar.

A ilusão de que a natureza pode ser plenamente constrangida pelos códigos se desdobra em nossa própria devoção e obediência à técnica. Foi Vilém Flusser quem percebeu que, ao operar um aparelho – a câmera – cujo programa técnico não compreendemos, passamos a trabalhar em função dele, tornamo-nos “funcionários” (Filosofia da caixa preta, 1983). Ele nos convida, então, a abrir essa “caixa preta”, a agir sobre a programação do aparelho para arrancar dele respostas que não estão previstas em sua construção. Podemos, então, desmontar literalmente a máquina ou reinventar os procedimentos recomendados pelos manuais.

Mas tal abertura ocorre ainda de um modo mais sutil e espontâneo. Graças às fissuras que inevitavelmente restam no aparelho, todas as imagens são potencialmente rebeldes quanto ao programa que quer orientar suas formas e, também, seus sentidos. As determinações do aparelho pouco resistem à liberdade da memória e dos desejos. Basta resgatar uma fotografia qualquer daquela caixa de sapato no fundo do guarda-roupa para perceber como ela não permanece igual a si mesma com o passar do tempo. A razão técnica é incapaz de filtrar os mistérios que estão na origem de nossa relação com as imagens.

No final das contas, o que vaza por essas fissuras é o tempo. É ele que permite àquelas sombras arcaicas se projetarem sobre nossas imagens para devolver-lhes a capacidade de tocar algo que está além das superfícies. Confrontando-nos com incertezas que pareciam erradicadas, esse tempo que transborda nos deixa ver uma realidade em constante mudança e permite o prazer sempre renovado de sua descoberta. O orifício da câmera escura é também o buraco negro do qual nem mesmo a luz pode escapar. É por isso que suas imagens, por mais estabilizadas que pareçam, serão sempre oscilantes e terão bordas escuras como aquelas que eram iluminadas pelo fogo. O limite que se atenua não é o do enquadramento, mas aquele que nos separa de outros tempos para os quais as imagens se abrem, aquele que se projeta de nossa memória e de nossas vontades.

O pensador francês Didi-Huberman imagina a seguinte situação: estamos olhando para um volume –  na verdade, um túmulo –  cuja superfície é vista em sua totalidade. Mas há uma dimensão obscura desse objeto que sabemos estar lá, e que o olhar não alcança: o lado de dentro, que acolhe um ser semelhante a nós, porém agora muito distante. Reconhecendo naquele volume a presença dessa dimensão que não se dá a ver, sentimo-nos então olhados por ela. O túmulo é aqui a metáfora limite de uma imagem qualquer que contém em si um mistério. Não precisa se referir à morte, basta haver a sombra. Nessa capacidade que a imagem tem de nos encarar, ele reconhecerá a aura de que falava Benjamin: “a manifestação de algo distante por mais próximo que esteja”. Didi-Huberman complementa a definição: “é antes de um olhar trabalhado pelo tempo que se trataria aqui, um olhar que deixaria à aparição do tempo de se desdobrar como pensamento, ou seja, que deixaria ao espaço o tempo de se retramar de outro modo, de se reconverter em tempo” (O que vemos, o que nos olha, 1992). Como ele diz, está aqui em jogo a onipotência reivindicada pelo olhar, mas também o poder de “uma memória que se percorre como quem se perde numa floresta de símbolos”.

Essa floresta é, talvez, aquela mesma natureza que aos olhares primitivos parecia tão assustadora quanto convidativa, e que a ciência quis tornar transparente e monótona. Ao simbolizá-la, as imagens oferecem um mapa de sua superfície, ao mesmo tempo que revelam os desvios mais obscuros que a constituem. Pelas imagens os olhares se guiam, nelas os olhares se perdem. Não é por outro motivo que o percurso proposto pelas imagens nunca se esgota.

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* Publicado originalmente em Prefácio, livro de Cia de Foto publicado em dezembro de 2012, que inclui também texto de Cláudia Linhares.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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