A cada novo ensaio fotográfico de Claudia Jaguaribe nos deparamos com reinvenções que buscam sintonizar suas inquietações visuais com os desafios da contemporaneidade. Viver hoje exige, antes de tudo, estar antenado diante da multiplicidade das ações simultâneas que nos cercam e do ritmo acelerado imposto pelas tecnologias que nos empurra para um estado de dúvida e indeterminação. Afinal, como sobreviver e como se inserir criativamente nessa situação de permanente incerteza?
É com essa perspectiva que podemos avaliar seu livro mais recente, Entre Morros, editado pela Cosac Naify que traz ainda textos de Mauricio Lissovsky (UFRJ), Sergio Burgi (IMS) e Antonio Gonçalves Filho (repórter especial do Estado). O livro propõe ao leitor uma viagem imaginária à cidade do Rio de Janeiro por meio de um conjunto de fotografias panorâmicas verticais que é interrompido por um duplo folder que demanda nossa intervenção – e, após sua abertura nos surpreendemos com um belíssimo panorama horizontal. Ou seja, esse jogo cruzado entre imagens panorâmicas verticais e horizontais proposto pelo desenho do projeto, torna o livro um objeto diferenciado. O título é verticalmente impresso no canto esquerdo da capa, se prolonga na lombada e sugere também uma divisão da paisagem entre as capas e os morros cariocas. Sem dúvida um livro-objeto com insinuação metalinguística.
Há dois anos Claudia Jaguaribe recebeu o convite para participar do Prix Pictel 2011 cujo tema era “Growth”, crescimento num sentindo amplo. Foi quando ela começou amadurecer a ideia de desenvolver um projeto de olhar para sua cidade, o Rio de Janeiro, sem cair na armadilha de produzir mais um conjunto de imagens facilmente reconhecíveis. Queria pensar como a fotografia da paisagem poderia trazer novos elementos relativos à questão da identidade, noção de lugar e de pertencimento.
Ao sobrevoar a cidade e se impressionar com as mais incríveis superposições, instituiu como ponto de partida o abandono da perspectiva renascentista, presente na fotografia desde sua origem e fim de encontrar alternativas visuais que fossem capazes de representar o tempo presente centrado na questão da mobilidade e da velocidade. O primeiro impacto foi justamente quando se deparou com um inusitado muro no Morro Dona Marta, construído para conter o crescimento desordenado da comunidade sobre a mata. As fotografias tomadas na ocasião mostravam exatamente o inverso, ou seja, era impressionante como a cidade não se continha em sua expansão e inexistiam limites.
O momento contemporâneo é sinônimo de urgência e Claudia desenvolveu um ensaio que traduz os diferentes aspectos da contínua transformação da paisagem natural. Além disso, suas imagens oferecem possibilidades visuais que instigam o leitor, responsável por estabelecer as associações e as filiações dessa elaborada construção. Decididamente, a incrível imaginação fotográfica da artista associada às diferentes práticas e a procedimentos específicos propicia os mais variados links com o tempo presente. Nasce uma paisagem espetacularizada, envolvente e sedutora, perfeitamente aceitável.
Seu trabalho, centrado justamente na destruição da perspectiva fotográfica clássica, culturalmente codificada, propõe uma imagem a partir de fragmentos de várias outras imagens que desencadeiam uma irresistível e evocativa memória. Hoje, parece natural admitir que o impulso de ver gera um olhar apressado. Claudia nos obriga o inverso, pois ao jogar com a superposição das fotografias tomadas de diferentes pontos de vista cria uma imagem que exige uma visão atenta, muito mais ampla que o próprio olhar. Ela impõe um ritmo instável à imagem e a leitura desatenta da foto se perde numa espécie de desorientação espacial e uma desinformação sensorial.
Somos então atravessados pela articulação das novas sintaxes – fraturas visuais que interrompem o percurso e geram estranhas descontinuidades. Entre Morros apresenta um resultado fascinante à medida que a fotografia ganha uma dimensão dinâmica e não mais estática como antigamente. Essa experiência demonstra que a variedade dos caminhos percorridos pela artista intensifica nosso exercício de ver. Ela nos mostra que a fotografia ainda possui uma incrível capacidade de produzir neste tempo presente de tecnologias digitais, novas formas de registro da paisagem. Claudia neste ensaio reforça a ideia de que “a fotografia é uma combinação de muitos fatores que derivam de uma realidade, mas que apontam para mais do que isso”.
A credibilidade de uma imagem fotográfica não depende exclusivamente da mediação que a artista estabelece entre o registro e o referente. Depende sim de uma atitude, das escolhas assumidas e principalmente da maneira como a imagem será disseminada. Ao percorrer o livro é possível perceber que algumas imagens trazem referências de outras. Sem dúvida, elas se espelham em algumas representações históricas e reconhecíveis como as fotografias de Marc Ferrez, por exemplo. Claudia combina intuitivamente a linguagem do documental, identificando aspectos da geografia, com inéditas superposições. Com isso, abre outras potências imagéticas que de tão excepcionais nem sempre nos damos conta da ilusão criada para evocar uma referência histórica numa paisagem que não existe.
A fotógrafa optou por desenvolver seu ensaio distante do consagrado cartão postal e da crueza miserável reconhecida diariamente nos noticiários da TV. Em muitas imagens, como essa ao lado, Menina na Laje, ela opta no primeiro plano pela presença de uma criança em sua brincadeira cotidiana e, à medida que nosso olhar avança sobre a paisagem épica construída, podemos perceber uma espécie de amálgama que opera por associação e proximidade, que se insinua como um quebra-cabeça interpretativo. A criança está lá, tranquila, mas não é nada diante da grandeza daquilo que lhe pertence – e não é ocupado.
Não há tensão na fotografia. Ao contrário, prevalece a invenção justamente na combinação de diferentes registros. Os diversos fragmentos superpostos têm como origem os voos de helicóptero, o perto e o distante, o alto, o particular e o geral. Informação, velocidade e distribuição são as palavras chave da pós-modernidade e, no caso temos, com certa dose de exatidão, o dentro e o fora da paisagem, bem como a visão sem cerimônia da montagem dos diferentes tempos a partir de novas práticas artísticas, como por exemplo, o uso do arquivo de imagens da artista. A vista do mar no alto dessa fotografia trai gloriosamente nossa visão.
O forte potencial expressivo do ensaio é resultado de uma composição elaborada que por sua vez revela uma organização complexa. A paisagem adquire a consistência de uma realidade e cada um dos elementos compositivos se institui como unidades visuais que podem ser apreendidas separadamente.
O desafio, pois, deste trabalho fotográfico é refletir tanto sobre sua contribuição na área da produção artística, quanto a possibilidade de desencadear uma nova consciência sobre a paisagem urbana. Claudia associa com singularidade as distâncias cronológicas e topográficas a fim de provocar nossas percepções diante daquilo que é aparentemente reconhecível. O que torna visível é uma trama confusa, gerada por uma arquitetura complexa e uma natureza fragmentada, que desafiam a fotografia e seu provável referente.
Sabemos que em muitas vezes, o excesso de referência nos aproxima da abstração. Claudia Jaguaribe se utiliza dos simulacros visuais para desencadear verdadeiras experiências sensoriais. Sua fotografia não cristaliza o momento – ao contrário, provoca espanto e admiração, encantamento e perturbação em oposição à fotografia documental tradicional. Ela disponibiliza novas evidências e explora o caráter combinatório e simultâneo do nosso cérebro. Por isso mesmo o ensaio apresenta grande capilaridade entre a fotografia documental e a experimental e nos mostra que a imagem técnica não corresponde mais a uma ordem imutável do universo.
1 Resposta