Dois foto-filmes raros de Chris Marker

[24.out.2009]

Nesses dias, tive acesso a cópias de dois filmes raros de Chris Marker, Lembranças de um futuro (Souvenirs d’um avenir, 2001), sobre o trabalho da fotografa Denise Bellon, e Se eu tivesse quatro dromedários (Si j’avais quatre dromadaires, 1966), um diálogo fictício em torno de imagens documentais que mostram as transformações do mundo. Ambos discutem fotografia e são feitos a partir de fotografias, por isso, foto-filmes. Compartilho alguns pequenos fragmentos desses e outros trabalhos.

Pra quem já conhece Marker, pode valer mais a pena ir direto aos vídeos.

Pra quem não conhece, uma breve apresentação. Ele é um fotógrafo, cineasta e artista multimídia francês, diretor do clássico La Jetée (algo como A Plataforma, 1962), filme de ficção também todo feito com imagens estáticas (com exceção de uma breve passagem em movimento). O filme conta a história de um prisioneiro que vive num planeta devastado pela 3ª Guerra mundial. Requisitado para experiências de viagem no tempo, ele retorna ao momento de um trauma de infância e à mulher cujo rosto é a única imagem que o reconforta. É imperdível.

 

Esse filme foi lançado no Brasil em DVD, junto com outra obra importante, Sans Soleil (Sem Sol, 1983).

A maior parte de sua obra não está disponível nem mesmo na França. Felizmente, existe uma rede de aficcionados que compartilha informações e, eventualmente, os próprios filmes. Assim eu fui formando uma coleção.

Recentemente, o produtor cultural Rafael Sampaio, ex-aluno nosso da Faap, procurou o Marker e propôs uma mostra de seus filmes, que aconteceu no Centro Cultural Banco do Brasil no meio deste ano. Em princípio, ele recusou. Disse que seria algo tão improdutivo quanto juntar pessoas numa sala para ficar lendo todos livros de um escritor. Mas acabou aceitando mostrar alguns trabalhos. Como poucas pessoas sabiam do que se tratava, creio que o público foi menor do que a mostra merecia. Mas foi uma conquista. O catálogo não é rico em imagens mas traz uma compilação de artigos, informações biográficas e uma descrição bastante completa de seus trabalhos, algo que não se encontra facilmente em lugar nenhum do mundo. Ainda é possível comprá-lo no CCBB por R$ 5,00.

Até amanhã (25/10), temos no MIS-SP a exposição Staring Back (algo como, Olhando fixamente de volta, 2007), um trabalho que realizou a partir de fotografias de diferentes épocas e lugares.

Marker é uma figura enigmática. Raramente dá entrevistas, não se deixa fotografar, não se conhece muito de sua biografia, mas inventam-se muitas lendas. Como diz o cineasta e amigo Alain Resnais, há hipóteses de que se trate de um extraterrestre. Dizem também que ele já foi visto em lugares muitos distantes ao mesmo tempo. É bem verdade que ele viajou por quase todo o planeta, e viu de perto quase todos os conflitos do século XX. Consagrado como fotógrafo e cineasta entre um público politizado, lançou trabalhos em vídeo nos anos 80, um CD-Rom (Immemory, 1997) e instalações multimídia nos anos 90 e, agora, com quase 90 anos de idade, anda com vários projetos pela internet. Recentemente, criou junto com artistas e ativistas da internet uma experiência no Second Life, uma ilha chamada Ouvroir (algo como Acervo, 2008) onde reproduz uma recente retrospectiva feita na Suiça. Sabe-se que, num dado momento, foi possível conversar com ele próprio, através de seu avatar, mas nunca tive esse privilégio. Para ilustrar, gravei uma navegação que fiz esse ano.

 

Marker tem uma habilidade excepcional de percorrer imagens de arquivos, dele ou de terceiros, e construir a partir delas amarrações surpreendentes, muitas vezes permeadas por elementos ficcionais. Faz história como um colecionador, como recomendaria Benjamin. Vamos aos dois filmes:

Souvenir d’um avenir (Lembranças de um futuro, 2001)

Homenagem e reflexão dedicada à obra da fotógrafa francesa Denise Bellon, que conviveu com os artistas das vanguardas européias, trabalhou na Alliance Photo junto a fotógrafos como Robert Capa, David Seymour e Pierre Boucher , e permaneceu atuante na França ocupada pelos nazistas. Navegando pelas imagens, Marker demonstra como a 2ª Guerra já se fazia pressentir na atmosfera captada por sua câmera, num tempo de suposta calmaria do pós 1ª Guerra. Esse filme esteve na Mostra do CCBB, e são deles as legendas que mostro.

 

Si j’avais quatre dromadaires (Se eu tivesse quatro dromedários, 1966)

Conversa ficcional entre um fotógrafo e dois amigos, sobre imagens tomadas em diferentes partes do mundo. Enquanto pensa a fotografia através desses personagens, Marker constrói um documentário que discute diferenças entre culturas, as transformações trazidas pelo progresso, e as utopias revolucionárias, alguns de seus temas mais recorrentes. Este filme não esteve na mostra e só consegui uma cópia dele esta semana. Quem quiser vê-lo inteiro, está disponível no site Tofu, sem legendas. A tradução deste fragmento é minha, sujeita a erros, e com um fragmento de conversa que não consegui entender. O estranho título do filme é o final do poema Dromadaires, de Guillaume Apollinaire, que foi musicado pelo compositor Francis Poulenc.

Avec ses quatre dromadaires (Com seus quatro domedários)
Don Pedro d’Alfaroubeira (D. Pedro de Alfarroubeira)
Courut le monde et l’admira (Correu o mundo e o admirou)
Il fit ce que je voudrais faire (Fez o que eu gostaria de fazer)
Si j’avais quatre dromadaires (Se eu tivesse quatro dromedários)

 

Bonus: Lettre de Siberie (Carta da Siberia, 1957)

Para finalizar, deixo um trecho deste filme que, apesar de muito discutido, é quase impossível de encontrar. Ao que parece, Marker não permite mais sua exibição. Consegui comprar um DVD defeituoso (faltam 3 minutos) e supostamente autorizado, num disputadíssimo leilão no e-Bay.

Nesse trecho, Marker faz um exercício que sugere a fragilidade das pretensões documentais da imagem: uma mesma tomada repetida três vezes, pode servir para legitimar discursos muito distintos e mesmo contraditórios.

A filmografia completa de Chris Marker pode ser vista no IMDB. Quase completa, porque ele segue produzindo.

Eu discuti alguns de seus trabalhos num artigo chamado Memórias fixadas, sentidos itinerantes publicado em 2008 na Revista Facom, da Faap, e parcialmente reproduzido no catálogo do CCBB. Pode ser acessado numa versão on line.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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