Colecionador de Olhares Desaparecidos [parte 1]

[05.abr.2011]

Primeiro Ato

Em 2009, passeando pela Feira do Bixiga, em São Paulo, num domingo qualquer, me deparei com um estranho amontoado de fragmentos fotográficos. Simplesmente uma coleção de recortes fotográficos, ou melhor, dezenas de fotografias rasgadas aos pedaços. Sim, quem resolveu jogar fora as fotografias também decidiu rasgá-las como meio de tentar fazer desaparecer suas imagens do passado.

Incomodou-me o fato de alguém ter tido a coragem de descartar sua própria história, por pior que seja. Tudo me perturbou: as fotografias rasgadas, os japoneses retratados, aqueles rostos desconhecidos, as roupas, os textos ideogramáticos, quase desenhos nos versos das imagens, enfim, um rico material descartado por alguém sem a mínima sensibilidade nem qualquer perspectiva de memória.

Indaguei um pouco sobre a origem do material. Teresa, minha fornecedora, me falou que tem alguns meninos que recolhem material descartado (ou seria lixo reciclável?) “treinados” para de encontrar algo com algum diferencial. Então, apesar de alguém ter rasgado e jogado no lixo, aquele material foi, primeiramente, valorizado por um anônimo garoto que percebeu algum potencial naqueles fragmentos. Teresa não queria ficar com o material, mas precisa da rede de meninos para abastecer o seu negócio, pois a qualquer momento poderá encontrar algum diamante que mudará sua vida. Ela acabou me convencendo da necessidade de ficar com aqueles fragmentos, apesar de parcialmente destruídos.

Aquelas fotografias rasgadas “imploraram” e acabaram em meu arquivo. Pensei em aproveitar algumas delas, raras de encontrar disponível por tratar-se de iconografia de um tempo passado e de uma situação de intimidade familiar. O material ficou guardado por algumas semanas esperando oportunidade de ser remontado e resignificado.

Segundo Ato

É incrível como nós, brasileiros de modo geral, não sabemos valorizar os pertences familiares. O que levou a pessoa a se desfazer do material e de maneira tão violenta e destrutiva? Qual seria o percurso dessas imagens familiares ao longo da sua história? Será que as fotografias que remetem ao início do século pertencem àquela história familiar? Quem seriam estes japoneses retratados em tantas ocasiões? Quantas famílias estão envolvidas nas fotografias? Será que existe troca de fotografias entre os familiares do Japão e os daqui do Brasil? Qual será o significado daqueles lindos ideogramas nos versos das fotografias? Quantas gerações estarão presentes nestas imagens? Como elas migraram para São Paulo? Que caminhos percorreram?

São muitas as perguntas e quase sempre sem respostas, mas estas dúvidas me estimularam e por isso mesmo acabei adquirindo as fotografias abandonadas na lata do lixo da história. As evidências eram apenas aquelas deixadas na própria fotografia, como o nome do fotógrafo, poucas datas, alguns estúdios, as cidades envolvidas, os índices presentes na própria imagem a partir do aculturamento do grupo. É perceptível que o grupo era conservador pois as roupas e alguns gestos flagrados nos dão evidências que aconteceu um processo de mestiçagem cultural. Enquanto as primeiras imagens são nitidamente “japonesas”, as mais recentes já mostram grupos miscigenados – ocidentais, negros e japoneses.

Terceiro Ato

Como sou um colecionador de olhares desaparecidos, senti o potencial existente naquela mala abandonada com fotografias rasgadas. Comecei a unir os fragmentos no terceiro ato, como se estivesse numa trama dramática de memória e esquecimento. Por enquanto, são imagens quase anônimas encontradas no lixo por um catador de papel, que as repassou para uma vendedora da Feira do Bixiga, chegando então às minhas mãos. Tudo ainda muito insuficiente para ganhar relevância. De qualquer maneira, o fato de ter percorrido esse estranho caminho – o objetivo inicial do descarte era simplesmente o esquecimento e o apagamento – e ter caído em minhas mãos é uma surpreendente coincidência. Um material perdido resignificado poderá ganhar contornos inimagináveis. Como se apresentou para mim e não por acaso, após alguma pesquisa e reflexão, busquei reencontrar os fios que tecem esta história.

Montei aproximadamente 40 fotografias, entre as quais selecionei algumas para a exposição Terceiro Ato, agora apresentada no 5º FestFotoPOA – Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre. Passei um tempo montando este quebra-cabeça, sem fazer emendas definitivas, mas conectando os pedaços para tentar entender o conjunto. Estas fotografias contam uma história que perdeu os seus elos ao longo do caminho e fez alguém descartá-las. Claro, antes disso, precisava desfigurá-las, destrui-las. Mas, perguntas ainda ressoam em minha cabeça: fotografias rasgadas continuam fotografias? Porque tornar novamente visível aquilo que foi violentamente descartado?

Bem, a exposição é o resultado parcial dessas inquietações. Resignificadas, as fotografias continuam rasgadas só que agora são vistas em outro circuito. Assumi a cor e os desenhos entre os pedaços que não querem se juntar, mas se transformar em outros ideogramas que clamam por novos significados e por uma nova existência. Que buscam dar evidências de sua importância do ponto de vista técnico e histórico. Vamos compreender esta exposição como uma tentativa de recuperar o prestígio destas fotografias abandonadas e como uma colaboração que busca reconstruir uma memória anônima tão importante quanto qualquer memória oficial. Isso é parte de um projeto pessoal mais amplo que é a valorização da fotografia produzida por fotógrafos desconhecidos e por fotógrafos amadores Brasil afora, que não foram contemplados, muito menos valorizados ao longo destes 170 anos de história.


“Terceiro Ato”. Vídeo feito por Cia de Foto e Galeria Experiência

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Jornalista, curador e crítico de fotografia, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professor e diretor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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