Hervé Guibert havia enviado uma pequena carta a Roland Barthes, pedindo para tirar um retrato do escritor em companhia da mãe. Barthes quase não saía de casa naquela época, desdobrando-se em cuidar da matriarca, já bem doente. Tocava piano, confortando-a. Não obteve resposta. Passada pouco mais de uma semana, ligou para saber se a carta havia chegado. Era sempre a mãe que atendia o telefone. Desta vez foi o filho: “E você não sabe que ela morreu faz dez dias?” Não sabia. Sua carta havia chegado à casa de Barthes, por uma coincidência infeliz, no momento do falecimento de maman. Essa história é uma das pouco mais de sessenta narrativas que compõem A Imagem fantasma, escritas em resposta à publicação de A Câmara Clara. Um livro sobre imagens falhadas ou nunca feitas, um conjunto de ruminações autobiográficas publicado em 1982, poucos anos antes de seus conhecido romance sobre os últimos dias de Michel Foucault (Ao Amigo que não me salvou a vida).
Cruzei o Canal do Panamá, voando do México para o Brasil, enquanto terminava a leitura desse livro. E logo a seguir, antes de aterrissar no Rio de Janeiro, já havia atravessado o primeiro capítulo de Diferenças, de Goran Petrovic, um dos mais respeitados escritores sérvios da atualidade. O tema de Petrovic também são fotografias. Tal como no livro de Guibert, ninguém as vê. São 22, cada uma delas servindo de pretexto a pequenas ficções autobiográficas relacionadas a eventos transcorridos em cada ano de vida do autor. O capítulo encerra quando o protagonista, aos 22 anos, renuncia ao sonho de se tornar fotógrafo e publica seu primeiro conto em uma revista literária.
Entre fotografia e literatura há sempre uma distância oceânica. Alguns escritores, como Guibert, praticaram as duas artes simultaneamente. Vários, como Petrovic, abdicaram do projeto fotográfico para se dedicar integralmente à literatura. Bem poucos, como Juan Rulfo, tendo lançado apenas dois livros – e considerado por muitos o melhor autor mexicano do século XX –, optaram pela câmera em detrimento da máquina de escrever.
Entre fotografia e literatura há sempre uma distância e uma travessia. Quando uma foto está pronta para fazer essa viagem? Minha avó L. trouxe da Lituânia para o Brasil seu álbum de fotos de mocinha, suas recordações de adolescente. Meu avô já vivia no Rio de Janeiro, depois de ter trabalhado por um ano no Panamá. Talvez já tivessem se casado em alguma cidade da Ucrânia – ou ela veio para se casar no Brasil, não sei bem. Ela não se deu ao trabalho de legendar nenhuma das imagens, pois devia sabê-las de cor. Algumas, impressas como cartões-postais, carregam mensagens no verso, escritas em alfabetos e línguas que ninguém na família mais lê. Acredito que talvez tenha chegado para algumas delas, a hora da travessia.
Essa foto, provavelmente feita em Berlim entre 1911 e 1912, sempre foi a que mais me fascinou. Minha avó costumava passar férias na Alemanha antes da Grande Guerra, onde tinha parentes. Cheguei a imaginar que o prédio correspondesse à célebre farmácia que pertenceu à irmã. A mesma em que, menos de trinta anos depois, o cunhado iria suicidar-se com cianureto quando a polícia veio buscá-lo para deportação.
Mas não é uma farmácia. Ao que tudo indica, é um restaurante. A família do proprietário e os vizinhos vieram para a calçada para sair na foto. Em todos os andares, inclusive nas águas-furtadas, há gente que posa nas janelas. Terão sido chamados aos gritos da rua? Ou uma das crianças passou de porta em porta para avisar que o fotógrafo havia chegado? Terá sido um desses meninos irrequietos, sem paciência para posar por tempo suficiente? O guarda da rua fez questão de não interromper a caminhada vigilante, garantia da tranquilidade dos cidadãos; ao contrário do elegante cavalheiro de chapéu-coco que por ali passava e jamais se permitiria a indignidade de uma figura borrada. Será que receberam cópias da foto? Ou foi-lhes suficiente imaginar que, um século depois, alguém, em alguma parte do mundo, iria olhar para eles e perguntar-se sobre seus sonhos?
Como não havia elevadores, os andares baixos eram os mais nobres – os brasões e outros elementos decorativos da fachada assim o demonstram. Todos parecem felizes e tranquilos nesta tarde de verão, particularmente o proprietário, cujo sorriso se entrevê, por trás do bigode, enquanto apoia a elegante bengala na calçada. Ao lado, seu pai ostenta uma pesada corrente de relógio no colete. Logo em seguida irá tirar o cebolão do bolso para certificar-se de quanto tempo o fotógrafo molengo roubou-lhe aos negócios. Em muitas fotografias de Augusto Malta, no Rio Janeiro, feitas na mesma época, é possível ver famílias inteiras posando diante de suas casas e lojas. Há quem diga que o fotógrafo da prefeitura usava desse subterfúgio para disfarçar que a verdadeira intenção da imagem era avaliar a situação dos imóveis que estavam destinados à demolição. Tudo para o bem da reforma urbana da capital. Quem sorriria condescendente para um fotógrafo que anunciava sua destruição?
Quando minha avó colocou essa fotografia em seu álbum de menina, divertindo-se talvez com o tio bigodudo e sonhando com as próximas férias na cidade grande, nenhum dos habitantes do No. 52 podia imaginar que em pouco mais de três décadas Berlim, com seus restaurantes e farmácias, estaria em ruínas. E que todas essas crianças estariam mortas, nos campos de batalha ou de extermínio. E no entanto, ainda hoje, cada uma das 36 janelas desse edifício – janelas que se abriram para um fotógrafo que chegara com a luz do dia – guarda uma história por ser contada. Em cada janela, uma fotografia pronta para atravessar o Canal do Panamá.
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