Entre os gregos antigos, o herói precisava ter seus feitos cantados pelos poetas para merecer essa denominação. Isso quase sempre lhe custava a vida ainda jovem: a condição de seu heroísmo era a própria imagem idealizada de sua morte, tal e qual viria a ser desenhada pelo mito. A “bela morte” (kalòs thánatos) é, como sugere o historiador Jean-Pierre Vernant, um dos temas centrais da Ilíada de Homero (Vernant, “A bela morte e o cadáver ultrajado”).
Com frequência, essa imagem seria convocada a participar de guerras futuras, ao lado dos novos heróis: em Tróia, Aquiles cantou em sua tenda para o jovem Patroclo os feitos de seus antepassados. Séculos depois, Aquiles reaparecia nas histórias que inspiravam Alexandre, considerado por sua mãe um descendente direto do herói da Ilíada.
Se esse heroísmo inspirador é uma condição que depende da imagem, a própria imagem do candidato a herói será colocada em disputa.
A ética dos antigos exigia que se concedesse àquele que foi morto em batalha o direito a todas as honras mas, por vezes, no calor da batalha, o vencedor não resistia à tentação de humilhar o vencido. Os deuses se mobilizaram para compensar a ofensa de Aquiles que, depois de ter matado Heitor, o herói troiano, amarrou-o a um cavalo e arrastou seu corpo diante do olhar de seu povo, antes de levá-lo para longe para que apodrecesse insepulto. O encontro em que Priamo, pai de Heitor e rei de Tróia, implora a Aquiles o direito de velar seu filho é considerado uma das passagens mais comoventes da Ilíada. Segundo Vernant, os gregos chamavam de “aikia” a ação de ultrajar o cadáver. Como ele diz, “o essencial não é poder tirar a vida do inimigo, mas despojá-lo da bela morte”.
Esse tempo legendário ficou distante, mas as imagens dos inimigos mortos permanecem em disputa. Os heróis continuam merecendo suas narrativas míticas, agora, ilustradas com imagens mais explícitas que aquela que era construída pela palavra do poeta. E a “aikia”, a humilhação do vencido, incorpora igualmente a fotografia e o vídeo como instrumentos recorrentes, já que rápida compreensão e difusão da imagem se revela um ingrediente poderoso do ultraje. Não faltam exemplos célebres, históricos ou recentes.
Em Canudos, Antônio Conselheiro foi desenterrado para ser fotografado em estado de putrefação: “estava hediondo. Envolto no velho hábito azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefacto e esquálido, olhos fundos cheios de terra — mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida” (Euclides da Cunha, Os Sertões). Depois, foi enterrado e desenterrado mais uma vez para que sua cabeça fosse cortada: “a face horrenda, empastada de escaras e de sânie, apareceu ainda uma vez ante aqueles triunfadores… Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio” (Os Sertões).
Há também a célebre a foto das cabeças expostas de Lampião e de seu bando. Imagens desse tipo cumprem funções diversas. É um troféu que atesta a supremacia do vencedor, como sugere Eder Chiodetto, respondendo à provocação feita por Livia Aquino no blog do Paraty em Foco, sobre as imagens que não gostaríamos de deixar para os olhares futuros. Mas a imagem cumpre também aqui o papel de exemplo a ser temido pelos adeptos da causa inimiga e de ruído lançado sobre a eventual idealização do líder morto. Muitos poetas cantaram a vida e a morte de Lampião, como fez Chico Science (Sangue de Bairro):
“Quando degolaram minha cabeça
Passei mais de dois minutos
Vendo o meu corpo tremendo
E não sabia o que fazer
Morrer, viver, morrer, viver!”
A dúvida de Lampião vendo seu próprio corpo estribuchando se reflete nesses olhares posteriores que, fequentemente, reviram seu cadáver para especular sobre sua condição de benfeitor ou bandido.
O mesmo post de Livia Aquino traz ainda outros dois exemplos, ambos ligados às guerras no Oriente Médio: Felipe Russo e Lua Cruz apagariam as fotografias feitas na prisão de Abu Graib, em que soldados norte-americanos transformam prisioneiros de guerra em animais de circo. Gustavo Pelizzon escolheu o vídeo do enforcamento de Saddam Husseim que, tempos antes, já havia sido exposto numa típica imagem de celebração de caça, no momento de sua captura.
Foi também para inviabilizar peregrinações que pudessem transformá-lo em mártir que o corpo de Osama Bin Laden foi sepultado às pressas, em alto mar, pelo exército norte-americano. Nesta operação, não houve espaço para reações passionais: a captura foi minuciosamente calculada, sobretudo porque exigiu que os EUA invadissem o Paquistão, território oficialmente amigo. Mas as comemorações da morte de Bin Laden cobraram imagens a altura do sofrimento gerado pelo 11 de setembro. Como o governo norte-americano resistiu em divulgá-las, não demorou até que fotomontagens começassem a circular pela internet.
Mais recentemente, vimos a queda de Muammar Gaddafi. Ao contrário do que ocorreu com Bin Laden, sua captura ocorreu em pleno calor das batalhas, e a circulação de imagens humilhantes foi inevitável. Os vídeos e fotos em que Gaddafi aparece morto e, antes, sendo linchado são bastante explícitos.
Gaddafi é um caso peculiar porque, nas últimas décadas, esforçou-se por substituir a pose de terrorista por outras mais midiáticas e folclóricas, alternando fantasias de general, rei mouro, beduíno ou playboy . Muitos concordarão que, não apenas seu passado, mas também sua aparência grotesca lhe tirava qualquer chance de uma “bela morte”.
Como não separavam o belo, o verdadeiro e o justo, os antigos já haviam colocado esse problema. Priamo, o rei de Tróia, comoveu seu filho Heitor lembrando que seus cabelos brancos e sua aparência velha e decadente inviabilizaria qualquer possibilidade de uma “bela morte”. Aterrorizado, ele imagina seu velho corpo despedaçado no campo de batalha, deixado para ser devorado pelos cães criados em seu próprio palácio (cf. Vernant, 49). Ser humilhado pelos próprios cães parece uma metáfora precisa do que vimos ocorrer com Gaddafi.
Mas não se pode compará-lo à Priamo. O rei de Tróia assumia que seu corpo trêmulo e seus cabelos brancos não seriam capazes de dar à sua morte uma representação a altura da liderança exerceu em vida. Gadaffi acreditava poder sustentar com cirurgias plásticas, tintura de cabelo e seu vestuário exótico a imagem que sua biografia não havia garantido. Incapazes de lutar, Priamo foi encontrado escondido num templo de Zeus, enquanto Gadaffi foi encontrado escondido numa fossa. Ou seja, dentre aqueles que não merecem uma bela morte, ainda parece haver uma hierarquia. Foi assim que as imagens degradantes da captura e da morte de Gaddafi soaram um tanto naturais e puderam ser comemoradas pelo público.
Requisitados como exemplos, tanto heróis como vilões jamais descansarão em paz, pois a batalha pode ser retomada mesmo quando o significado de suas imagens parece resolvido. Nem o lugar dos vilões nem o dos heróis está garantido, seja nos mitos antigos, seja nos modernos. Há sempre uma chance de reviravolta.
Aqueles que hoje dominam a circulação de imagens em larga escala não deixarão de testar seu poder diante de julgamentos que pareciam definitivos. Judas é sinônimo mais que consolidado de traição. Mas, recentemente, a National Geographic assumiu como projeto institucional as pesquisas sobre um tal livro denominado Códice Tchacos (nome da família de antiquários que encontrou a relíquia) que promete mudar essa leitura. Apoiado em dramatizações e depoimentos de autoridades científicas, a série exibida em seu canal de TV sugere uma nova versão para os feitos de Judas: Jesus teria arquitetado sua própria morte, condição necessária à sua afirmação como mártir. Dentre os apóstolos, apenas Judas seria fiel e corajoso o bastante para assumir o papel do vilão que a história pedia. E assim atesta o programa, logo em sua abertura: “aqui o traidor se torna um herói”.
Che Guevara, mesmo sendo um personagem histórico recente, teve tempo de se tornar uma figura mítica, morreu jovem e preservou sua bela imagem, como manda a tradição dos heróis clássicos. Sua efígie se tornou emblemática do sonho de levar a revolução para além das fronteiras de Cuba, inspirou as lutas contra as ditaduras na América Latina e, por fim, se transformou em ornamento corporal de uma juventude cuja aparência rebelde já não está atrelada a nenhuma causa. Há alguns anos, a revista Veja protestou – também em tom institucional – contra o culto à figura de Che, atacando em duas frentes: de um lado, resgatou detalhes perversos de sua personalidade e, de outro, reivindicou que o momento humilhante de sua rendição na Bolívia fosse lembrado, assim como eram as imagens que lhe conferiam uma aura heróica (“Che: há quarenta anos morria o homem e nascia a farsa“). Mal percebeu a revista que Che estava fora de combate havia tempos, e que sua imagem tinha sido apaziguada pelo próprio movimento de celebração indiscriminada.
A disputa pela imagem de seus personagens célebres apenas transforma em espetáculo as potencialidades da história. Esse jogo de heróis e vilões orientam nossa relação com as novas e velhas causas políticas, do mesmo modo que as celebridades inspiram as tendências de comportamento. Quando suas imagens são convocadas para disputar o lugar estereotipado e eloquente do herói ou do vilão, é porque tais personagens já chegaram derrotados ao nosso tempo. Provavelmente, o silêncio que resta num velho retrato anônimo pode convidar a envolvimentos mais efetivos com a história.
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