Cadáveres em disputa II (ou Taxidermias políticas)

[22.nov.2011]

Num post anterior, discuti o modo como a imagem de um líder permanece em disputa após à sua morte. A memória representa uma sobrevivência simbólica que joga um papel bastante efetivo no destino do mundo. Mas o poder é pragmático e, às vezes, prefere não aguardar a atuação da memória: antes de descansar em paz, o corpo já inanimado do líder pode ser convocado a demonstrar suas possibilidades de sobrevivência. A fotografia cumpre o papel de uma taxidermia que permite a esse corpo resistir ao apodrecimento para permanecer na batalha.

Muitos se lembram dos últimos dias de Tancredo Neves, mas vale repassar alguns fatos. Carismático, ele parecia personificar as condições que permitiriam a transição da ditadura militar à democracia, mesmo sem eleições diretas. Escolhido presidente por um colégio eleitoral, Tancredo foi internado com fortes dores no abdômen em 14/03/1985, um dia antes da data marcada para sua posse. O diagnóstico oficial falava em diverticulite, mas sabe-se hoje que sua infecção derivava de um tumor. Nos dias que se seguiram, o país acompanhou com comoção os boletins esperançosos do jornalista Antonio Britto, porta-voz de Tancredo.

Tancredo Neves e equipe médica do Hospital de Base de Brasília, 1985 (Foto: Gervasio Batista)

No dia 25/03, foi distribuída à imprensa uma foto que mostrava o presidente esboçando um sorriso, ao lado da equipe médica do Hospital de Base de Brasília. Na manhã seguinte, enquanto o público via a foto pelos jornais, Tancredo era transferido para o Hospital das Clínicas, em São Paulo, com uma hemorragia bastante severa. Sua agonia se estendeu por quase mais um mês. No dia 21/04, Britto anucniou a morte de Tancredo.

Uma semana depois da divulgação dessa foto, a Revista Veja publicou um texto (“Verdades e mentiras dos retratos”, 03/04/1995) falando em “montagem” e denunciando os artifícios usados para compor a cena: o cachecol “escondia o conduto de soro enfiado abaixo da clavícula esquerda do presidente”, enquanto atrás do sofá, segundo duas testemunhas, “estava escondida uma enfermeira. Agachada, ela segurava o frasco de soro”. O fotógrafo Gervásio Batista desmentiu essa versão, mas admitiu que a cena da foto levou cerca de uma hora para ser preparada.

Foi um momento de insegurança e de muitas especulações. José Sarney, vice de Tancredo, era um dissidente da extinta Arena, partido de sustentação do governo militar. Não tinha o mesmo carisma e não inspirava grande confiança. Foi inevitável pensar nos riscos que a ausência de Tancredo representaria. Aquela fotografia sugere certa ansiedade em tranquilizar o público e, possivelmente, também o meio político. Mas o episódio foi tão desastroso que alguns acreditaram ter flagrado ali uma estratégia desesperada para esconder um grande perigo iminente. Não faltaram teorias conspiratórias sugerindo que Tancredo havia sido assassinado e que o que víamos ali não passava de um corpo quase mumificado. Bobagem. Mas, exageros à parte, essa imagem não deixou de ser banhada pelo seu carisma: para muitos, ela se tornou a representação do sacrifício a que Tancredo teve de se submeter para garantir a transição. Descontando-se o desastre a que própria democracia nos conduziria nas eleições seguintes, o episódio se encerrou sem maiores surpresas com Sarney permanecendo na presidência.

Esperamos que um líder não abandone a batalha. A idéia de que ali ele deve permanecer mesmo depois de morto também encontrou seu espaço em nosso imaginário. Antes das especulações sobre Tancredo, já havíamos visto isso como ficção no cinema.

O filme Sob fogo cerrado (1983) mostra o conflito moral do personagem Russell Price, premiado fotógrafo norte-americano, que vê em suas mãos o poder de decidir uma guerra. Enquanto os EUA apoiavam o ditador Anastasio Somoza como forma de frear o avanço do comunismo na América Latina, Price começa a ter simpatia pelos rebeldes Sandinistas. Quando o governo anuncia a morte de Rafael, o grande líder rebelde, Price é então convocado a usar sua câmera e seu prestígio para provar o contrário, mantendo acesa a esperança revolucionária.

Muito antes, o clássico El Cid (1961) narrava a história do governante de Valencia que, no século XI, defendeu a Espanha dos muçulmanos liderados por Yusuf, Rei de Marrakesh. É a presença de El Cid que mantém a unidade de seus soldados e que apavora os inimigos, numericamente mais poderosos. Após um ferimento letal, a notícia de sua morte enche de confiança as tropas de Yusuf. Pouco antes de seu último suspiro, El Cid reúne forças para exigir um lugar ao lado do rei na batalha decisiva que iria ocorrer.

Tancredo e Rafael foram trazidos de volta à luta pela fotografia. El Cid não conheceu a técnica, mas a estrutura que permite imobilizá-lo pode ser vista como ancestral daquelas “cadeiras de pose” usadas pelos estúdios do século XIX, que garantiam a manutenção de uma postura rígida nos retratos de longa exposição. Em todo caso, o princípio parece ser o seguinte: quando o corpo se torna inanimado (ânima é alma em latim), é a imagem estática que pode fazê-lo parecer vivo. Esses episódios são um tanto extravagantes, mas a lição que se poder tirar daqui é interessante: é exatamente essa imagem estática pode fazer um corpo atuar sobre um tempo que já não é o seu. Porque o movimento (que lhe falta) e o tempo (sobre o qual se desdobra) são coisas muito distintas.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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