Blanche, o monstro libidinoso

[05.jun.2011]

Antes que existisse uma biologia capaz de pensar a “vida” como função abstrata, lembra Foucault, havia apenas uma história natural interessada nos “seres vivos”, suas formas, suas tipologias. Ele completa: “fazer a história de uma planta ou de um animal era tanto dizer quais são seus elementos ou seus órgãos, quanto as semelhanças que se lhe podem encontrar, as virtudes que se lhe atribuem, as lendas e as histórias com que se misturou” (Foucault, As palavras e as coisas).

O conhecimento consolidado buscava os traços e comportamentos médios que definiam as espécies. Mas podemos supor que essa mesma ciência nunca deixou de ansiar pelos exemplares que fugissem aos padrões, pois eram eles que motivavam as narrativas mais excitantes. As coisas não eram diferentes quando se tratava da nossa própria espécie.  Ao contrário, os desvios da forma humana permaneciam comoventes mesmo quando a ciência moderna já se voltava essencialmente para a estrutura invisível das coisas e dos organismos. Com seu realismo, a fotografia serviu de combustível para a persistência desse espetáculo de formas estranhas. Afinal, não há linguagem sutil que dê conta das exceções: o “monstro” é, na etimologia da palavra, aquilo que é digno de ser “mostrado”. Foi assim que sobreviveu na medicina do século XIX uma linha de pesquisa herdada daquilo que havia de mais fantástico na velha história natural: a teratologia, o estudo das aberrações.

Blanche Dumas é um desses exemplares humanos raros que foi alvo da curiosidade médica. Nasceu em 1860, provavelmente na Martinica, e foi fotografada na infância, na adolescência e já adulta, com variações de poses surpreendentemente clássicas. Acostumada à exposição, ela sempre encarou a câmera com desenvoltura.

Nos hospitais, gabinetes de curiosidade ou nos circos, não era incomum ver todo tipo de acidente da natureza. Mas o que surpreendia no caso de Blanche era o fato de que uma transformação parecia ocorrer diante do olhar que percorria seu corpo de cima a baixo: acima, um rosto belo e delicado, uma expressão serena, um par de seios exemplares, cabelos bem cuidados; abaixo, uma terceira perna mal formada que desestruturava seus quadris, bem ao lado de protuberâncias que os cientistas explicavam como sendo outro par de seios. Destacando-se de seu corpo totalmente nu, as imagens exibiam ornamentos floridos no cabelo, suntuosos colares, e três botas pesadas que não deixavam dúvidas de que aquele membro era uma terceira perna.

É difícil recompor sua biografia, mas é possível intuir algumas histórias a partir das próprias imagens e dos relatos pretensamente científicos que sempre a cercaram. Algumas de suas imagens apareceram pela primeira em 1869, ilustrando o artigo “Caso de Teratologia”, do Dr. Charles Robin, publicado na conceituada Revue Photographique des Hôpitaux de Paris. O texto dizia: “a reprodução das monstruosidades pela fotografia é uma idéia que merece ser encorajada, e que tornará mais fácil o estudo daquilo que apenas se pode abordar em pequeno número”.

Outro artigo de 1877, escrito pelo Dr. Étienne-François Maurice, intitulado “Nota sobre um monstro humano feminino com três membros pélvicos”, traz quatro imagens de Blanche em poses diversas, e relata a descoberta da menina em Liège, na Bélgica, quando foi examinada pela primeira vez por médicos, aos 6 anos de idade.

Uma imagem de Blanche já adulta, com cerca de 25 anos, foi publicada nos Annals of Gynecology (Boston, 1887), no artigo “Um monstro feminino, duas vulvas e vaginas completas e separadas, quatro mamas, três pernas”. Na foto que analisa (última abaixo), dois pontos pretos parecem ter sido pintados para que a protuberância entre suas pernas fossem mais claramente caracterizadas como um par de seios. O autor do artigo (e supostamente da foto), o médico austríaco Joseph Bechtinger, naquele momento radicado no estado do Pará, no Brasil, explicava por meio dessa anatomia atípica seu excesso de disposição sexual. Já o editor da revista, apresentava o artigo nos seguintes termos: “É com grande satisfação que observamos entre os nossos assinantes e correspondentes um profundo interesse pelo tema da teratologia. Não se deve mais dizer que a prática desta profissão na América não está interessada em assuntos puramente científicos”.

Blanche Dumas: 1. atribuído ao Dr. Adrien Delahaye, c. 1868 (publicada invertida); 2. A. Liebert, s/d; 3. P. Petit, s/d; 3. atribuído a J. Bechtinger, c. 1885

Blanche Dumas: 1. atribuído ao Dr. Adrien Delahaye, c. 1868 (publicada invertida); 2. A. Liebert, s/d; 3. P. Petit, s/d; 4. atribuído a J. Bechtinger, c. 1885

Um desenho (feito possivelmente a partir da foto de Bechtinger) foi publicado no livro Anomalias e Curiosidades da Medicina, de 1886, pelos médicos norte-americanos George M. Gould and Walter L. Pyle. O texto oferece ao leitor detalhes sobre sua anatomia e algumas fantasias a respeito de sua biografia: “Blanche tinha também duas vaginas e duas vulvas bem formadas e, conforme relatos, ambas igualmente com desenvolvida sensibilidade. Conforme se dizia, ela possuía um acentuado apetite sexual. Ficou conhecida por ter muitos admiradores masculinos e por poder entretê-los com suas duas vaginas. Com tal libido, Blanche passou algumas vezes por Paris, onde se tornou cortesã. Além disso, ao ouvir que Jean Baptista dos Santos, um homem com três pernas e dupla genitália esteve em Paris quando fazia um tour pela Europa, expressou um desejo sincero de fazer sexo com ele. Embora não haja evidência de que os dois tiveram encontros, há forte rumor sobre um breve affair”. Jean dos Santos (provavelmente João) era português. Uma foto que destaca seus dois pênis, feita por C. D. Fredericks (c. 1865), também se tornou bastante difundida.

Talvez toda linguagem construa em certa medida o mundo que descreve. Aprendemos que assim ocorre com a fotografia, e assim ocorre também com a ciência. Isso fica ainda mais evidente quando ambas estão assim aliadas. Ao explorar sua beleza e especular sobre a sexualidade exacerbada de Blanche, os textos determinaram-lhe uma vocação e operaram como uma espécie de profecia. As poses da infância e da adolescência, em que aparece nua com seus ornamentos, encarando-nos com segurança ou, ainda, deitada como uma pequena odalisca, já parecem querer anunciar a cortesã que ela se tornaria. Foi assim que, com o apoio da ciência, Blanche escapou dos circos de aberrações para se destacar nos bordéis da Paris.

Tags: , , ,

jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

1 Resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Reload Image

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.